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Nada há de mais fugaz que as vanguardas literárias e artísticas, todas reivindicando a própria perenidade. Em 1928, o Modernismo de 1922 já era passadista, como então se dizia, e devia ser substituído pela Antropofagia, tornando obsoletas as inovações anteriores, no que, aliás, vinha depois da Anta, todas representando as duas alas marchantes da ideia moderna (Raul Bopp. Vida e Morte da Antropofagia. 2ª ed. Apresentação de Régis Bonvicino. Rio: José Olympio, 2008).

A nova estética teria surgido por geração espontânea num restaurante paulista, especializado em rãs: "Quando, entre aplausos, chegou o prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se, começou a fazer o elogio da rã, explicando, com uma alta percentagem de burla, a doutrina da evolução das espécies. Citou autores imaginários, os ovistas holandeses, a teoria dos homúnculos, para provar que a linha da evolução biológica do homem, na sua longa fase pré-antropóide, passava pela r㠖 essa mesma rã que estávamos saboreando entre goles de um Chablis gelado".

Era mais uma das esfuziantes invenções de Oswald, que, a partir de então, seria o autor da nova escola e seu doutrinário em título, a ponto de escrever, alguns dias depois, o respectivo Manifesto, criando, ainda, em maio do mesmo ano, a Revista de Antropofagia, mensário, diz Raul Bopp, "que servia de cartão de visita, para contato com núcleos intelectuais de vanguarda, nos estados [...]". O episódio do restaurante é curioso por imbricar em Les Origines Humaines, de Jean-Pierre Brisset, livro e autor aos quais, salvo engano, ninguém se refere, fontes prováveis das teorias oswaldianas. É, de fato, nessa obra que o Príncipe dos Pensadores, como era então chamado, contrapõe à de Darwin a sua própria teoria evolucionista: "As rãs perderam a faculdade de se transformar, mas permanecem até hoje para testemunhar, pela forma graciosa, e seu canto tão semelhante à voz humana, assim como por sua inteligência, que o Todo-Poderoso serviu-se de sua criação para a do homem. [...] Os gritos da rã são a origem da linguagem humana. [...] O som da voz e a modulação do canto da rã já têm qualquer coisa de humano. Seus olhos, seu olhar, alguns tics da face são semelhantes aos nossos, e do calcanhar ao pescoço nenhum animal possui uma graça corporal que tanto o aproxima do corpo humano [...]".

Até que viesse a desaparecer, acrescentava Brisset, "a rã, como o homem, podia fumar cigarros, o macaco não sabe fumar, Haeckel, que ele cita longamente em L’Origine de I’Homme (1900), modificou-se completamente desde a publicação das nossas obras"; uma das provas mais convincentes da nossa descendência das rãs, concluía, "é a existência de cinco dedos nas nossas mãos e nos nossos pés".

Resta saber se Oswald de Andrade, famoso pela sofreguidão com que se apropriava das invenções alheias, conhecia os livros de Brisset, havendo probabilidades que lhe tivesse conhecido as ideias por intermédio do amigo Blaise Cendrars, que, justamente, achava-se em São Paulo, corrigindo as provas tipográficas de Moravagine(1924). Trata-se, como se sabe, de um livro de 1917, publicado em 1926, no qual longos desenvolvimentos são dedicados ao problema abordado por Brisset (cuja reputação de sábio excêntrico não lhe teria certamente escapado). É verossímil, por consequência, que hajam conversado sobre a matéria, tanto mais que Cendrars conferia ao nosso continente esta honra excepcional: "O berço dos homens de hoje está na América Central e mais particularmente nas margens do Amazonas". O Amazonas do Cobra Norato, obra, mais do que qualquer outra, paradigmática da Antropofagia, cujo órgão oficial foi a revista do mesmo nome, assim apresentada no editorial de Alcântara Machado: "O indianismo é para nós um prato de muita substância. Como qualquer outra escola ou movimento. De ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago come o índio e come o chamado civilizado: só ele fica lambendo os dedos".

A Antropofagia teve vida curta, pois surgia quando as ideias modernistas já se haviam desgastado, ainda mais que, no testemunho de Raul Bopp, houve um geral changé des dames, cada um tomando a mulher do outro. Em tudo isso, a projetada bibliotequinha "ficou em nada" e a Antropofagia passou para os obituários da época. Mas, foi divertido enquanto durou.

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