Desde quarta-feira (18), a falta de Toninho Mendes é expressa por quem nem mesmo o conheceu. São leitores e autores influenciados pelo trabalho e generosidade desse que, sem ser quadrinista, nos deixa uma das obras mais significativas do gênero no Brasil. Nascido em Itapeva (SP), em 1954, Toninho foi fundador da Circo Editorial, que entre 1984 e 1995 publicou nomes como Laerte, Luiz Gê, Angeli, Glauco, Chico e Paulo Caruso (alguns dos gigantes do quadrinho nacional) e títulos como ‘Chiclete com Banana’, ‘Geraldão’, ‘Piratas do Tietê’.
Mal tinha o Brasil saído da ditadura e o grupo abria um novo mundo para jovens leitores, fazendo humor ácido com política, sexo, drogas, a vida burguesa, você, eu e eles. Não faltaram termos e imagens escatológicas em edições que chegaram a vender mais de 100 mil exemplares nas bancas.
“Eu era muito fã das revistas europeias, e a Circo deixava o negócio perto de você, mostrava que podia ser feito aqui. A Circo era um assunto.”
Para o quadrinista Rafael Campos Rocha, cuja veia humorística pode ser medida pela personagem-título ‘Deus, essa gostosa’, o trabalho de Toninho Mendes foi um divisor de águas. “Eu tinha 14 anos, um metro e meio, gostava de desenhar. Aí você encontra uma revista dessas, você tem companhia”, lembra sobre o perfil de “resistência cultural” das revistas, cujo poder de revelação, para ele, não existe mais nos quadrinhos.
“Era revolucionário. Tinha o Pasquim, mas era mais intelectual. [As revistas da Circo] eram mais underground.”
Benett, chargista da Gazeta do Povo que também segue a veia do humor, acredita que a Circo mudou radicalmente o norte do que estava sendo produzido e ampliou o pensamento dos leitores. Pessoalmente, mudou completamente sua vida: “Foi uma revelação, como ver Jesus, praticamente”, ele jura.
“Lembro da revista Lúcifer, que pelo que ele conta não deu certo: os jornaleiros devolviam os pacotes fechados por causa do nome.”
Foi com esse espírito libertário que Rogério de Campos, então jornalista, se identificou quando conheceu Toninho, já no fim dos anos 1980. O assunto da entrevista? Rogério, hoje um dos principais editores de quadrinhos no país, não lembra, a não ser que foi uma conversa de quatro horas, embalada por cerveja, num boteco carioca. “Ele foi um resistente, um pensamento libertário num universo tão voltado para a venda de produtos”, diz sobre a importância do colega, que abriu caminho para a produção autoral, provou que havia gente interessada e mostrou a viabilidade da HQ nacional, criando uma base para o surgimento de outras editoras, inclusive as suas.
“O Toninho foi essa pessoa com talento e empenho para montar uma editora, e ao mesmo tempo inserido nessa busca cultural da qual a gente fazia parte. Uma grande editora dificilmente faria isso.”
A cartunista Laerte foi testemunha desse perfil, quando, alguns anos antes, se via insegura em largar o emprego fixo para entrar na Circo, afinal, tinha família para sustentar. Toninho garantiu à criadora dos ‘Piratas do Tietê’ uma entrada regular de dinheiro como adiantamento de direitos autorais. “É um traço de personalidade muito especial, ele era de uma grande generosidade”, recorda Laerte, que lançou no ano passado ‘Modelo vivo’, livro organizado por Toninho. “Sem isso, eu não teria saído de onde estava e dificilmente teria começado a produzir quadrinhos assim.” Outro a atestar a qualidade que ia além do trabalho de editor é Marcatti, que participou da ‘Chiclete’. “O que é mais bonito é o quanto, como editor, ele foi coautor. O Toninho não editava, mas agia junto, compartilhava – era um coautor sem precisar ser autor”.
O próprio Toninho reconhecia sua falta de talento para administração de negócios, e a inflação claudicante da época não facilitou a vida da Circo. Depois de seu fechamento, em 1995, ele seguiu com projetos em outras casas, criou um selo (pelo qual editou, entre outros, os ‘Quadrinhos Sacanas’) e lançou pela SESI-SP um livro sobre sua grande empreitada.
Toninho morreu aos 62 anos, em razão de um acidente doméstico provocado por mal súbito, deixando tantos projetos inacabados (uma série de TV chamada “São Paulo, meu humor”, um site que compilaria o melhor da Circo e outros que não vamos conhecer). Fica a possivelmente mais vasta obra de um não-quadrinista brasileiro e a imagem de um pequeno-grande-homem sempre sorridente: “Podia ser sorriso sarcástico, malicioso, feliz ou leve”, recorda Marcatti, “Mas é a veia de humor na essência da pessoa”.
Aquele bigodinho
Aquele bigodinho, o jeito de malandro e a voz estragada dele bastavam para eu saber que o Toninho Mendes seria o cara que ia me ensinar tudo que eu precisava saber para vencer nesse mundo atormentado das artes gráficas. Era essa a imagem que eu tinha do outro lado da mesa num bar na Avenida Pompeia numa noite nos anos 80 (ou 90, não me cobrem muita precisão). Eu acho que era a primeira vez em que eu conversei com o Toninho. Bom, ele não tinha jeito pra professor e eu nunca fui um aluno muito aplicado, então a coisa não aconteceu bem como previsto, mas foi divertido assim mesmo.
Me encontrei com ele algumas vezes nessa época, anos 80, começo dos 90, antes, durante e depois de trabalhar com a Animal. Não é exagero dizer que ele foi muito importante para minha carreira. Talvez seja exagero dizer que eu tenho uma ‘carreira’ mas seja lá o que eu fiz nesses últimos 30 anos, ele com certeza foi uma figura importante e o Toninho merece um lugar de respeito nessa história.
Ele já era importante para mim mesmo antes de conhecê-lo porque a Circo publicou uma coleção muito importante de livros de cartum e quadrinhos brasileiros que eu devorei (tanto os trabalhos dos cartunistas quanto o design e edição, porque eram livros muito bem cuidados, nos quais os autores eram tratados com respeito irreverente e criatividade) antes de começar a devorar as revistas no momento em que a Circo invadiu as bancas com as revistas de Angeli, Luis Gê, Laerte e Glauco.
E antes disso tudo, ele era o cara por trás do Versus, outra referência para quem cresceu nos anos 70 absorvendo tudo que fosse possível em termos de revistas, jornais e livros. Eu queria saber fazer o que ele fazia, montar uma página, editar etc. Ele tinha muito orgulho do que fazia e tinha que ter mesmo. Quando conversava comigo ele gostava de chamar a atenção para algum detalhe de diagramação, alguma ideia brilhante, para seu processo criativo e eu gostava de escutar. Prestava atenção. Aprendi com ele através dessas conversas e lendo e estudando o que ele editou.
Acima de tudo que ele podia e sabia fazer, dos projetos que saiam daquela cabeça, ele tinha uma empolgação que era um antídoto para minha timidez. Ele pegava os desenhos que eu levava para publicar no JAM (encarte da ‘Chiclete com Banana’) e parecia que ele tinha descoberto um baú cheio de esmeraldas. Ele devia fazer assim com todo mundo que levava desenhos para ele mas, na época, os elogios dele eram motivo de orgulho pessoal. E também não importa se meus desenhos tivessem ou não tratamento especial, o que eu acho importante hoje quando eu me lembro disso era a empolgação de um editor pelo trabalho que ele publica, genuína e sem disfarce, com aquele bigodinho e voz estragada.
Depois da era de ouro da Circo, mais ou menos o fim das bancas para nós, pequenos mortais, ele não desistiu, fez ainda um monte de coisa, algumas eu nunca vi, já que eu larguei a escola pela metade sem me formar e fui fazer outros cursos e não acompanhei tão de perto essa produção. Parece que ele tinha um eterno projeto de revista de humor e quadrinhos na manga, pronto para mostrar a quem quisesse ou não. Essa insistência é a prova da esperança que não morria nele, mesmo que o corpo já estivesse meio surrado. Ele foi embora com vários projetos na gaveta e na cachola e que nunca vamos conhecer. É uma pena. Não apenas pelas ideias que não vamos ver mas principalmente pela esperança dele que se vai. Justo agora.
Depoimento de Fabio Zimbres
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