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Diogo Mainardi é o nosso Voltaire. Antes de mais nada, é alguém que decidiu passar a vida escrevendo sobre os nossos próprios defeitos. Enquanto boa parte das pessoas prefere exaltar a tudo e a todos, ele é do tipo que prefere demolir. Quase tudo e a quase todos. Atualmente, seu principal púlpito é a revista Veja, onde semanalmente desanca políticos, jornalistas, escritores, cineastas, cidades, categorias profissionais e o que mais aparecer pela frente. Antes disso, porém, o instrumento de crítica preferido por Mainardi eram os livros. Publicou quatro deles. Quatro romances recheados de sátira que agora são republicados pela Record em grande estilo.

Apesar de ter tido relativo sucesso com os livros, Mainardi não foi o autor da idéia de levá-los de volta às prateleiras. Na verdade, ele também é um severo crítico do seu próprio trabalho. Conquistou o Jabuti – o mais tradicional prêmio da literatura nacional – já no primeiro livro. Foi considerado por muitos como uma das grandes promessas da ficção brasileira. Mas hoje diz nem pensar em escrever novos romances. "Literatura é para gente desocupada", diz. "Quando eu era desocupado, mexia com literatura. Um dia me mandaram arrumar um trabalho e ganhar dinheiro. Arrumei o trabalho. E larguei os livros", afirma. A explicação não podia ser mais típica.

A comparação com Voltaire não é casual. O escritor francês, que no século 18 detonava com os mais consagrados intelectuais europeus, rindo deles página depois de página, é uma das principais inspirações dos romances de Mainardi. "Voltaire e Swift são meus totens", comenta ele. Swift, mais conhecido por suas Viagens de Gulliver, era outro satirista de mão cheia. É dele o panfleto em que um autor ensandecido propõe, modestamente, que as crianças pobres da Irlanda fossem usadas como alimento, poupando seus pais dos gastos e ajudando o país a crescer.

Cronologia

O primeiro romance de Mainardi, assim como a Modesta Proposta, de Swift, também tem a ver com teoria econômica. O nome do livro, Malthus, é uma referência ao teórico britânico que previa o aumento da população em progressão geométrica, enquanto o alimento do mundo cresceria em proporção aritmética. Traduzindo, isso queria dizer carestia mundial. No romance de Mainardi, como não poderia deixar de ser, isso dá origem a humor. Um personagem se multiplica, sem qualquer explicação lógica para isso, em muitos. Publicado em 1990, ganhou o Jabuti.

Depois veio Arquipélago, outro pequeno romance, ainda mais divertido. O livro começa com uma grande inundação, que aniquila uma cidade inteira. Apenas a cúpula de uma igreja fica acima do nível da água. Lá, um sujeito metido a filósofo e dez outros, esses sem personalidade nem noção, se encontram. E o filósofo decide aproveitar a ocasião para criar uma "sociedade perfeita", com regras que ele mesmo inventa. O livro é uma grande tiração de sarro das teorias estapafúrdias que somos capazes de criar para a humanidade.

O terceiro romance é o mais polêmico, talvez. O Polígono das Secas tem uma estrutura baseada na literatura regionalista brasileira. Claro: para também fazer graça com isso, mas sempre de um jeito altamente sofisticado. Este é o romance que passou por mais mudanças para a republicação. Na primeira versão, publicada pela Companhia das Letras, havia várias passagens falando sobre o "Autor" do livro – que era um outro personagem, e não o próprio Mainardi. "Tirei toda aquela parte em que o autor explicava o romance. Ivan Lessa, Paulo Francis e Luiz Schwarcz, quando leram os originais, me aconselharam a eliminar essa parte. Na época, bati o pé e publiquei do jeito que estava. Agora, relendo o livro, vi que eles tinham razão", afirma.

O último romance é apontado pelo próprio Mainardi como o melhor dos quatro. O título já tem a cara do autor. Chama-se Contra o Brasil. Mainardi diz que o título não explica o livro nem quer dizer que ele próprio seja contra o país, ou algo do gênero. Segundo ele, o livro é um "anti-Policarpo Quaresma". Se o personagem de Lima Barreto era um ingênuo e ferrenho nacionalista, o de Mainardi, Pimenta Bueno, é um ferrenho e esquisito antinacionalista. Sua função no mundo é avacalhar com a nação.

"Minha opinião sobre os romances, relendo-os agora, é a seguinte: os três primeiros têm um monte de erros, mas exprimem vivacidade. O último é mais redondinho, e exprime a mesma vivacidade dos anteriores", afirma Mainardi. A história começa com Pimenta Bueno deitado no sofá criando uma ode contra o Brasil. Os primeiros versos do poema, inacabado porque o personagem dorme antes de completá-lo, são os que se seguem: "Contra o Brasil e contra os brasileiros/De todos os países da história/ Em infâmia nós somos os primeiros". Deu para sentir o clima?

Pimenta Bueno sai então em uma aventura que começa em um cinema de sua propriedade, ocupado por mendigos, e termina com uma expedição de visita aos índios Nambiquara. Todo o percurso é marcado por citações de visitantes ilustres que passaram pelo Brasil e que deixaram algum desaforo à nossa pátria. Pimenta Bueno lembra tudo o que eles disseram, e sempre lhes dá razão.

Ironia

No fundo, assim como todos os outros livros, e como em tudo o que Mainardi faz, o humor e a ironia são o principal. No fundo, ele está tirando sarro de todos. Dos brasileiros, do seu personagem e dele próprio. Em um trecho de seu Polígono das Secas que acabou suprimido na nova edição, o Autor-personagem dizia uma frase lapidar: "A ambição é conceber uma verdade irrefutável, universal, eterna, de sabor bíblico, resumindo o dogma literário a uma única sentença, simples e linear: Quando a literatura não mata a humanidade, é a humanidade a matar a literatura."

Hoje, em tom um pouco menos amargo, Mainardi continua sendo irônico. E diz que é um caso raro no país. "A literatura brasileira é desprovida de ironia." Aproveita ainda para dizer que em muitos casos, no mundo atual, a sua principal arma acaba sendo usada como meio de conformismo. "A ironia é um recurso retórico. Pode ser usada para incomodar ou para confortar. Numa época conformista como a nossa, é natural que seja transformada num instrumento de conformismo", diz.

Não no caso de Mainardi. Para o nosso Voltaire, a ironia continua sendo um jeito de nos passar uma mensagem. Aliás, o próprio escritor, sempre no seu estilo ferino, define qual é a mensagem de sua literatura. "A mensagem? A mensagem é: a gente não vale nada." O curioso é como ele consegue dizer isso de um jeito divertido. Típico de um grande escritor.

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