Encontrar pela primeira vez Federico Fellini (1920-1993) pode ser difícil. Não que seus filmes sejam complexos. Na verdade, a estrutura da maioria deles é bastante simples. É notória a aversão que o italiano tinha a roteiros e, mais de uma vez, ele criou usando apenas uma página escrita de texto. Toda a história de que precisava estava ali e, de resto, era só ligar a câmera e se deixar levar pela criatividade.
É "o triunfo do estilo sobre o conteúdo", nas palavras do crítico Dwight Macdonald (1906-1982).
Talvez o ponto-chave da filmografia de Fellini seja, exatamente, a criatividade. Nas mais de 20 produções que escreveu e dirigiu para o cinema e a televisão, ele conseguiu criar um mundo singular. Se estivesse por aqui, completaria 90 anos no próximo dia 20.
Uma de suas proezas foi virar adjetivo ("felliniano") narrando histórias que se resumem a poucas palavras e elas quase sempre têm a ver com "festa", para citar o comentário da crítica Pauline Kael (1919-2001).
Um jornalista que vive nas baladas da sociedade romana e um diretor de cinema cuja vida é uma diversão aparente são sinopses precisas de duas obras-primas, A Doce Vida (1960) e Oito e Meio (1963). A primeira faz meio século em 2010 e a efeméride é um bom pretexto para apresentar o filme a públicos novos ou reapresentá-lo aos que já o conhecem.
Entra aqui a tal dificuldade. Atravessar um longa-metragem de três horas de duração sem uma "história" pode ser ruim para quem não embarcar no delírio de Fellini. E o delírio é feito de imagens. A Doce Vida tem várias que entraram para a história do cinema. A mais lembrada mostra Anita Ekberg na Fontana di Trevi, em Roma, chamando Marcello Mastroianni para entrar na água. Babando pela loira, ele tira os sapatos e entra, disposto a declarar sua paixão, dizendo que ela é uma força da natureza, a casa que ele gostaria de habitar.
Da cena de abertura, com helicópteros carregando uma imagem de Jesus Cristo, à final, com o olhar direto para câmera de uma menina na praia, A Doce Vida parece criar um paralelo entre a Roma "moderna" dos anos 1960 e a Roma Antiga. "A imoralidade atual lembra o hedonismo de Roma em decadência", escreveu Pauline Kael numa edição da revista The New Yorker em 1970. Para ela, o diretor italiano descobriu o fascínio que o pecado pode exercer sobre o público exatamente com A Doce Vida.
Apesar da atmosfera festiva do clássico, paira sobre ele uma certa melancolia, uma tristeza experimentada por pessoas que buscam diversão não porque estão felizes, mas porque querem se distrair e precisam fugir de algo que as incomoda.
Veja a discussão entre Marcello (Mastroianni) e sua mulher, Emma (Yvonne Furneaux), quando os dois estão no carro dele.
"Você não entende que já encontrou o que é importante na vida. Você estraga tudo, sempre inquieto e descontente", diz Emma. "Quando duas pessoas se querem, o resto não importa."
"Não acredito em seu amor agressivo, pegajoso e maternal! Não quero, não me serve! Não é amor, é embrutecimento. Quero ficar sozinho", rebate Marcello. A briga vai longe, ele a tira do carro e volta mais tarde para buscá-la. Mas então o estrago já estava feito. A vida tem sua porção amarga.
Ventríloquo
Fellini era um contador de histórias que confiava no seu talento e fazia pouco de aspectos técnicos. Ele não filmava com som direto e preferia dublar os atores na pós-produção. Como não escrevia diálogos e parecia não se preocupar com o que diziam os personagens, inventava frases na sala de edição. Havia situações impagáveis, narradas no documentário A Magia de Fellini (2002), parte do DVD especial de A Doce Vida, lançado no Brasil pela Versátil.
Numa delas, Fellini mandou colocar palavras na boca de um ator, mas o técnico de som, desesperado, dizia que o homem estava de boca fechada e era impossível dublá-lo desse jeito. O cineasta, gesticulando à italiana, teria dispensado a explicação do técnico dizendo que o personagem podia ser um ventríloquo e era assim que ele falava! Pronto, fim da discussão. (Entende-se por que a dublagem tosca se tornou uma característica de seus filmes.)
Havia uma boa razão para não usar som direto. Explica Roger Ebert, no livro Grandes Filmes (Ediouro): "Ele (Fellini) costumava recorrer a uma pequena orquestra ou a um fonógrafo para incluir música durante a filmagem de certas cenas. É por isso que tantas vezes (...) os atores parecem não estar simplesmente caminhando, mas sim movendo-se sutilmente, embalados por uma melodia inaudível. Parecem capazes de ouvir a trilha sonora".
Diante de tão belas imagens e músicas a maioria composta por Nino Rota , você esquece o resto. Danem-se história, roteiro e dublagem.
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