O recente lançamento discográfico do selo austríaco Capriccio Brazilian Sentiments nos surpreende pela inteligente junção das canções brasileiras do século 20 vindas dos estilos popular e clássico. Na realidade, ouvindo estas obras na maneira inteligente como foram gravadas pela cantora brasileira residente na Alemanha Cristiane Roncaglio percebemos que, muitas vezes, é uma tolice tentar separar boas composições em campos diferentes, afinal, é mais fácil separar composições em boas e más, não clássicas e populares, e todas as obras contidas neste CD são composições muito boas. Vale a pena lembrar que o selo Capriccio, pouco conhecido por aqui, tem entre seus contratados ao menos três cantores de primeiríssimo time: o tenor Ramón Vargas, a soprano Ruth Ziesak e o contra tenor Max Emanuel Cencic, e o repertório proposto por ele vai muito além dos títulos mais conhecidos. A concepção deste CD obedece à trajetória típica deste selo, e o que podemos dizer desta cantora brasileira é que ela está em ótima companhia.
Fruto da Escola de Música e Belas Artes de Curitiba, onde estudou com a saudosa Neide Thomas, Cristiane Roncaglio é uma cantora excepcional no que se refere à beleza de sua voz de soprano, à dicção excepcional e à sua perfeita afinação. Com uma carreira europeia bem consistente, ela presta um serviço absolutamente fantástico com este CD à divulgação de nossa música no exterior e à conscientização dos próprios brasileiros de que existe uma fusão bem significativa entre a linguagem musical de Villa-Lobos e a bossa nova.
Canções
O repertório do CD privilegia Tom Jobim (oito canções) e Heitor Villa-Lobos (sete), sendo que deste segundo aparecem obras desconhecidas mesmo entre nós, como "Solidão" (1920) e "Epigrama" (1921). Elas estão ao lado de três canções bem conhecidas que o compositor escreveu no fim de sua vida e que fazem parte da obra Floresta do Amazonas (1958). De Tom Jobim, ao contrário, todas as canções são muito bem conhecidas, entre elas "Garota de Ipanema", "Eu Sei Que Vou Te Amar" e "Samba de Uma Nota Só". Ao privilegiar estes dois compositores, sentimos que a influência dos dois é fundamental para as transformações que a arte musical brasileira sofreu. Baden Powell (representado por "Canto de Xangô") e Belchior (representado por "Como Nossos Pais") denotam uma unidade bem clara ao estilo de Tom Jobim, e as canções de Claudio Santoro ("Canções de Amor", de 1960), Ronaldo Miranda ("Retrato", de 1969) e Waldemar Henrique ("Minha Terra", "Uirapuru e "Tamba Tajá", todas da década de 30) revelam um parentesco indubitável ao estilo de Villa-Lobos. Faz-se uma divisão bem interessante no CD: as canções populares são acompanhadas por um violão e as canções de estilo mais clássico são acompanhadas por um piano. Aliás, os músicos que acompanham a cantora são outra agradável surpresa: o violonista André Bayer tem uma sonoridade transparente, e a maneira como o violão é usado como instrumento de percussão em alguns momentos é de um bom gosto a toda prova, e o pianista Cristian Peix é de uma precisão extraordinária. O intermezzo pianístico da canção "Cair da Tarde" de Villa-Lobos é um dos pontos culminantes desta gravação. Se há esta divisão nos instrumentos, a unidade do CD é a maneira suave e expressiva da cantora. Ela se porta com a mesma naturalidade em todos os estilos, e sua expressão extremamente profunda nos surpreende mesmo na obra-prima de Ary Barroso "Aquarela do Brasil".
Ausências
Minha única ressalva a este CD é a falta dos textos cantados no encarte. Certas canções de Villa-Lobos utilizam belíssimos poemas de Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho que mereciam ser igualmente divulgados. Outra ausência importante é omitir os textos das "Canções de Amor" de Claudio Santoro, de autoria do maior parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Moraes. Nossos grandes poetas e suas obras mereciam também uma reverência especial. A dicção da cantora é excelente e nós brasileiros não perdemos nenhuma palavra, mas os estrangeiros aproveitariam melhor este belo CD compreendendo melhor os seus textos.