O poeta Manuel Bandeira escreveu muita prosa. E das boas mesmo que a modéstia, ou talvez a auto-crítica exagerada, o fizesse duvidar da qualidade de seus textos. Em carta ao amigo Mário de Andrade, de 1930, escreveu: "Acho que artigo pede inteligência, pede cultura, pede reflexão e eu me sinto muito mal preparado e cheio de deficiências e sem saúde nem coragem para me preparar".
Aliás, foram justamente os problemas de saúde o poeta descobriu cedo que tinha tuberculose que o fizeram encarar seriamente a literatura, exercitada nas infindáveis horas de repouso. Pode ser que o interesse pelos temas do Brasil tenha começado nas viagens em busca de climas mais adequados à sua fragilidade física. Mais tarde, o ofício de cronista de jornal levou Bandeira a percorrer o país e o que viu em suas andanças transformou-se em valioso material para os textos que escreveria, segundo ele "às pressas", para A Província, de Recife, o Diário Nacional, de São Paulo, e O Estado de Minas, de Belo Horizonte, entre outros. Mas, foi a influência dos colegas modernistas, que na época empenhavam-se em descobrir o Brasil à própria maneira, que de fato acendeu o desejo do poeta de reunir tais textos no livro Crônicas da Província do Brasil, de 1936.
Quase 70 anos depois, a Cosac Naify relança o volume em elegante concepção editorial (320 págs., R$48), fazendo jus ao que dele disse o intelectual Antonio Candido: "Companhia inseparável de todo homem de bom gosto".
Embora o Bandeira cronista trate de temas tão díspares como a arquitetura e a reconstituição histórica, a literatura e as artes plásticas ou pequenos perfis de artistas nacionais, o livro é uma investigação "da alma de província" do Brasil, que persiste (ainda hoje) até mesmo nas grandes capitais. Em sua "Advertência", escreve o poeta: "O Brasil todo ainda é uma província. Deus o conserve assim por muitos anos".
Bandeira recolhe crônicas ligeiras, estudos minuciosos e pequenos ensaios, criando uma unicidade que permite ao leitor atual mergulhar no Brasil dos anos 20 e 30, sem no entanto, considerá-lo anacrônico. Faz isso com a modernidade e o bom-humor que caracterizam sua poesia. Aliás, a poesia fornece material para sua prosa e vice-versa, como bem define Júlio Castañon Guimarães, no posfácio da nova edição.
O poeta delicia-se (e ao leitor) ao escrever sobre os hábitos de leitura das adolescentes, em Leituras de Mocinhas. A maioria não fugia dos romances açucarados de José de Alencar e de Julio Dinis, mas o depoimento de uma delas surpreendeu este admirador das questões nacionais, que o descreve: "Dentre os livros de estudo que tenho lido, o que mais me agradou até hoje foi a História do Brasil. Por que nela é que (...) conhecemos de nome os principais homens heróicos daquele tempo. Assim como José Bonifácio de Andrade e Silva, por alcunha Tiradentes (...). Tinha esse apelido devido ter a mania de arrancar dentes". Minas Gerais é o xodó, não só de Bandeira, mas de todos os modernistas, que em 1924 acompanharam o escritor franco-suíço Blaise Cendrars numa viagem pelas cidades históricas. O poeta não acompanhou a comitiva, mas escreveria o minucioso estudo De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes, em que revela farto conhecimento sobre a história e a arquitetura do município.
O fascínio por Minas deste recifense criado no Rio é notório. No pequeno perfil de Portinari, escreve sobre a cidade onde o artista nascido na Itália foi criado: "Brodowski é paulista, mas já fica perto de Minas. Nos mapas é de São Paulo, mas em Portinari já é Minas". Os perfis que fez de alguns artistas revelam a coragem que Bandeira dizia não ter: em um dele, nega sua própria relação com o Modernismo brasileiro ao confessar que não gosta da fase antropófoga de Tarsila do Amaral. Prefere a Tarsila que "pintava com o azul e cor-de-rosa dos bauzinhos e das flores de papel, que são as cores católicas e tão comoventes da caipirada". Por frases impagáveis como essas, encontradas em cada uma das mais de 300 páginas, o livro já vale a pena.
Serviço: Crônicas da Província do Brasil (Cosac Naify, 320 págs., R$48)
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