Há exatamente três décadas, o público americano assistia pela primeira vez a “Curtindo a Vida Adoidado”, um dos filmes mais marcantes e queridos dos anos 1980. O contexto histórico de 1986 continha o desastre de Tchernóbil, o maior acidente nuclear da história, um gol de mão que sagrou a Argentina campeã da Copa do Mundo, a passagem do cometa Halley e o Plano Cruzado. E, para crianças e adolescentes em idade escolar no Brasil, importante também era saber o que ia passar na Sessão da Tarde.
Essa é a primeira explicação para o apego à obra de John Hughes, que contava como Ferris Bueller (Matthew Broderick) convenceu o melhor amigo, Cameron Frye (Alan Ruck) e a namorada Sloane Peterson (Mia Sara), a matar aula para aproveitar um dia de ócio em Chicago, a bordo de nada menos que a Ferrari do pai de Cameron. Entre um momento e outro, quebra a quarta parede, ou seja, fala diretamente com o público.
Dublagem foi feita em... um dia!
Quando um filme como esse estoura, imagina-se que os bastidores, até da dublagem, tenha uma certa aura mágica. Não foi nada disso, como conta o ator Nizo Neto, o dono da voz de Ferris Bueller. “Em dublagem, ainda mais naquela época, a gente chega e faz. Quando o filme foi dublado ele ainda não era um ícone. Depois ele se tornou cult. Na verdade, ele se tornou especial para mim depois do grande sucesso que fez na TV”, explica ele, que parou de dublar há alguns anos. A cena preferida, como de muitos fãs, é a da parada, quando Ferris canta “Twist and Shout”. Além de Matthew Broderick, Nizo dublou personagens de Michael J. Fox, Jon Cryer e Patrick Dempsey em clássicos oitentistas.
Esse, assim como outros clássicos da época como “Flashdance”, “De Volta para o Futuro” e até outros filmes de Hughes, são confortáveis como o sofá da casa da mãe. “O fator nostalgia exerce alguma influência: todos foram exibidos e reprisados inúmeras vezes. O número de pessoas entre 25 e 35 anos que viu estes filmes na TV da sala, comendo bolinho de chuva e negligenciando momentaneamente a lição de casa é muito grande”, afirma o crítico de cinema Wellington Sari.
“Essas obras carregam muitas lembranças de um tempo divertido, sem muitas responsabilidades, sem muita compreensão sobre as questões da vida que escapem dos muros da escola - os jovens não se perguntam qual o sentido da vida, mas sim qual o sentido em se aprender aquelas equações matemáticas que nunca mais serão usadas na vida -, tempo esse que é aquele que vai dos 7 aos 17 anos”
O diretor de “Curtindo a Vida Adoidado” merece um capítulo à parte no hall do cinema dos anos 1980. Sob o comando e roteiro de John Hughes, morto em 2009, também marcam esse período oitentista “Gatinhas e Gatões” (1984), “Clube dos Cinco” e “Mulher Notal Mil”, ambos lançados em 1985. São roteiros seus a franquia “Férias Frustradas” (1983, 1985 e 1989) , “Garota de Rosa Shocking” (1986), “Alguém Muito Especial (1987) e, já nos anos 1990, “Esqueceram de Mim”.
“Ele era a personificação do excesso: na indústria, escrevia mais rápido do que todo mundo, filmava muito material bruto, lançou mais filmes do que qualquer um, em Hollywood e talvez no mundo, naquele período de tempo; era alto, tinha voz potente e o maior mullet de 1986. De alguma maneira, Hughes foi o Orson Welles de ombreiras”, acredita o crítico de cinema Wellignton Sari, que fez um projeto de livro sobre a produção de Hughes para seu trabalho de conclusão de concurso em Jornalismo, em 2009.
Essas obras todas têm uma moral bastante clara e lógica. No caso de “Curtindo a Vida Adoidado” (ou, no original, “Ferris Bueller’s Day Off”), trata-se de um grande conto moral da juventude. “E, como todo conto moral, é conservador: ‘aproveite a vida’, ‘ajude o amigo’, ‘arranje uma namorada companheira’, ‘vá ao museu’, ‘conheça Picasso’ e ‘Seurat’, ouça Beatles, ‘saiba que “as causas valem menos que a beleza dos gestos’”. Ou seja, faça a coisa certa”, completa Sari.
Na escola
Para o professor de Cinema da UFPR Carlos Rocha, a identificação com Ferris, que é bastante livre e influente, é uma forma de catarse para esse público que cresceu junto com ele. “Ele consegue aglutinar visões de mundo e de desejos comuns”, afirma.
A identificação com os personagens nessa época também justifica esse afeto. “John Hughes é um diretor que tinha uma sensibilidade muito especial para a adolescência e fazia uma conciliação entre cinema comercial e abordagem existencial da adolescência. Uma adolescência americana, mas que conversa com outras no mundo inteiro”, acredita Fernando Severo, supervisor do curso de cinema do Centro Europeu.
A fantasia adolescente de que do lado de fora a vida está andando, enquanto, como aluno, se está parado, prestando atenção a conteúdos de pouca aplicabilidade, também é objeto de identificação. “Você quer descobrir o mundo e se sente oprimido pelo sistema escolar. Todos passaram por isso e gostariam de estar fazendo outras coisas”, afirma Fernando Severo.