No conto “A Mulher do Próximo”, uma das pérolas de sua série “A Vida Como Ela É”, o escritor Nelson Rodrigues (1912-1980) narra um adultério em triângulo que envolve dois amigos: Gouveia, Arlindo e sua esposa.
Quando descobre a traição (a mulher falara o nome de Gouveia dormindo), Arlindo fica possesso, mas, diante das desesperadas súplicas do amigo, decide não matar o casal adúltero, pois ainda amava a mulher. Em vez disso, a partir daquele momento, passa a cuspir na cara do outro sempre que o encontra. Com o tempo, Gouveia, além de não resistir à humilhação pública, ainda oferece o rosto ao sacrifício.
Episódio semelhante é narrado no clássico “Os Maias”, de Eça de Queiroz (1845-1900), entre os personagens Dâmaso e Carlos de Maia. Depois de um desentendimento, Carlos promete que “em qualquer parte que o encontrasse, daí por diante, fosse uma rua, fosse um teatro, lhe escarraria na face”.
Barbárie, nossa velha conhecida
As cusparadas literárias mostram que o ato de escarrar na cara de alguém é uma das mais aviltantes ofensas na cultura luso-brasileira. E estão se tornando comuns na polarizada política nacional. Como exemplo, os entreveros entre o deputado Jean Wyllys e Jair Bolsonaro, na votação do impeachment, e do ator José de Abreu em um restaurante, no último fim de semana.
Na cusparada você deixa claro que o outro é abjeto, você quer eliminá-lo. É uma forma de matar o oponente, acabar com sua integridade deixando-o vivo
Para Bortollo Valle, professor de filosofia na PUC-PR, a cusparada é a “extrapolação do padrão ético” e simboliza uma agressão maior do que a tentativa de matar alguém. “Na cusparada você deixa claro que o outro é abjeto, você quer eliminá-lo. É uma forma de matar o oponente, acabar com sua integridade deixando-o vivo”.
Valle reputa a atitude como uma infantilização do ato político. “Usa o recurso dos que não têm mais argumentos”, diz. “É uma volta não ingênua à infância. É uma pena que tenhamos chegado neste ponto numa sociedade que se pretende civilizada”.
Filósofo e professor da Unicamp, Roberto Romano considera a cusparada um “ato pré-político”, ao qual não cabem definições de esquerda ou direita. “É a barbárie, nossa velha conhecida”.
Nem lobo mau, nem chapeuzinho vermelho
Ele observa que desvios éticos na política não são exclusivos do momento atual e lembra o caso de grupos de esquerda comemorando a morte da mãe do ex-presidente Fernando Collor na frente do hospital, em 1995, ou de militantes de direita hostilizando políticos e ministros .
Ele chama atenção, no entanto, que qualquer agressão moral ou física nunca é produto de um lado só em sociedades “razoavelmente livres e democráticas como a brasileira”.
Uma cusparada metafórica sempre é mais indicada
“Quando a política chega ao nível das paixões baixas, não existe lobo mau e chapeuzinho vermelho”. Isso serviria para explicar os aplausos seletivos de grupos como os de defesa dos direitos das mulheres, ligados historicamente à esquerda, admitindo a agressão à mulher no caso José de Abreu.
Romano o cita o caso para criticar ambas as partes envolvidas. O casal que atacou o ator por ter levado ao convívio público a ética assumida em privado, “muitas vezes fanatizada” e, pior, em um local simbólico como um restaurante” que tira a pessoa de sua condição animal para o ritual de refeição”.
“Ninguém tem o dever de aguentar seu ódio em um local público”. Por outro lado, a reação do ator teve a mesma carga de mau gosto. “A filosofia fala em ‘dissimulação honesta’, uma cusparada metafórica sempre é mais indicada”.
Direito
Para o Direito, a questão “agressão e revide” são importantes na avaliação penal do ato da cusparada. Para o professor de direito penal da Unicuritiba Dante D’Aquino, nestes casos cada situação pressupõe um tratamento diferente. Mas, se em tese existe o objetivo de atingir a honra de terceiro, o tratamento judicial é mais grave.
“O objetivo em uma cusparada não é a lesão corporal. É atingir a honra pessoal com situação humilhante. É isso que caracteriza a injúria real no Código Penal”, explica.
Imunidade serve para o exercício parlamentar, que é expressar suas opiniões falando e não para praticar injúria por catarradas
Ele destaca, porém que a lei brasileira prevê um excludente de punibilidade (o juiz pode não aplicar a pena que no caso é de menor potencial sujeito a multa e prestação de serviços) quando o ofendido de forma igualmente reprovável provocou a injúria.
“Nos dois casos parece que houve uma ofensa grave antes dos atos, mas o caso do parlamento é mais grave em função do decoro que se espera de um deputado”, avalia. “Imunidade serve para o exercício parlamentar, que é expressar suas opiniões falando e não para praticar injúria real por catarradas”.
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