Manoel de Barros: “É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.”| Foto: Divulgação

"Eu queria fazer parte das árvores como os pássaros fazem. Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras fazem. Eu só não queria significar. Porque significar limita a imaginação. E com pouca imaginação eu não poderia fazer parte de uma árvore. Como os pássaros fazem. Então a razão me falou: o homem não pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem."

Trecho do livro Menino do Mato, de Manoel de Barros.

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A trajetória de Manoel de Barros pode ser definida como um desmonte do senso comum? Não. Talvez Barros não seja movido por um desejo de destruir algo, ao contrário: ele construiu, e segue a construir, um universo artístico particular, perfeitamente identificável mesmo em uma única frase. Isso pode ser conferido no mais recente livro, Menino do Mato, editado pela Leya, que está republicando a obra completa do autor.

"Eu queria usar palavras de ave para escrever." Assim começa o livro que, dividido em duas partes, é uma longa narrativa. É uma narração lírica. O poema-rio, outra maneira de se pensar o livro, segue por 96 páginas e tem momentos mais intensos; às vezes, há desníveis, pequenas cascatas e, ao final, uma epifania, ou uma pororoca: "Porque o homem não se transfigura senão pelas palavras".

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O narrador, o "eu" condutor que enuncia o discurso, é o mesmo que já apareceu em obras anteriores de Barros. É um adulto que lembra do menino que foi, e esse menino era e é alguém que busca o novo, o ainda não-dito, e isso sugere não pouca liberdade.

Afinal, se tudo que o existe tem nome, e já foi batizado, essa voz se permite e propõe um renomear tudo.

"A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias", diz o narrador, um inventa-mundos.

Esse menino, presente em cada palavra do livro, está contextualizado em um universo distante dos grandes centros e, portanto, as referências e os interesses dele dizem respeito a elementos da natureza, o que desperta os sentidos e amplia a percepção: "A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras".

O menino, então, busca e consegue o ambicionado arpejo, que é dizer de modo melódico o que jamais foi dito: "Eu queria pegar na bunda do vento".

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Esse narrador tem aquilo que já foi definido como "olhos de primeira vez", o que também poderia ser traduzido como o "olhar desarmado": ele vê que o rei está nu, e diz isso.

O corpo do livro, que é um rio, é rio porque às vezes tem margens mínimas, frases breves em uma única frase, como "invento para me conhecer", "escrever o que não acontece é tarefa da poesia" e "eu gosto do absurdo divino das imagens" – frases que cabem no Twitter, aforismos que são, com beleza e ritmo.

Mas esse rio-livro ainda tem amplas margens, blocos de palavras, por exemplo, em que o narrador revela a sua opção do fazer como contraponto ao universo acadêmico: "Minha professora me emprestou um livro do Todorov./ Todorov escreveu que a linguagem poética pertence à pré-história./ Pensei que a conversa que ouvira, um dia, das rãs com as pedras e das pedras com águas./ Havia de ser linguagem pré-histórica e até quase poética./ Faltasse talvez apenas a harmonia das palavras".

O narrador sabe que o teórico e linguísta búlgaro radicado na França pode ter lá a sua sapiência. Mas ele prefere olhar o mundo com os próprios olhos, apesar de tudo, apesar de Todorov.

Essa voz, elaborada por Manoel de Barros, flerta com a possibilidade de sorver e estar em meio às coisas inúteis, os inutensílios, aquilo que aparentemente não tem valor, mas sem o que a vida não vale a pena ser vivida, como a preguiça, o abandono e a poesia.

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"Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono", diz, em tom de confissão, o narrador do livro. GGGG1/2

Serviço

Menino do Mato, de Manoel de Barros. Leya, 96 págs., R$ 29,90.