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Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista

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Eliane Brum necessita das palavras como do ar que respira. Sem elas, talvez não existisse, sucumbisse ao mundo. Desde a infância, vivida no município de Ijuí, noroeste do Rio Grande do Sul, descobriu o fascínio da observação e da escuta, ferramentas que lhe seriam fundamentais no exercício da profissão de jornalista, na produção dos perfis e reportagens que dela fizeram uma referência na imprensa brasileira. Lá, também apaixonou-se irremediavelmente pela leitura, que a salvou da solidão, e nela despertou a pulsão, bem mais do que um desejo, de escrever. Em entrevista concedida à Gazeta do Povo, por e-mail, Eliane fala sobre seu novo livro Meus Desacontecimentos - A História da Minha Vida com as Palavras, uma obra confessional, escrita em primeira pessoa, que não é uma autobiografia convencional, mas uma espécie de inventário. Nela, a escritora, hoje colunista do site brasileiro do jornal espanhol El País, resgata sua relação com as palavras. Leia a seguir trechos da entrevista.

Seu novo livro não é exatamente uma autobiografia, mas não deixa de ser um livro de memórias, nas quais a ideia da sua relação com a palavra, em suas várias possibilidades, é quase sempre central. Como e por que surgiu a ideia de escrevê-lo?

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O desejo que me move neste livro é escrever sobre a minha história com as palavras. A infância é o território onde encontro as pistas para um duplo desafio: decifrar a palavra na minha vida e, ao mesmo tempo, usá-la para dar novos sentidos à minha trajetória. Não é um livro sobre a infância, mas busco nas memórias de infância desvendar por quais caminhos a palavra escrita me deu um corpo que me permitiu viver para viver – e não para morrer. Um livro sempre parte de um desejo muito vital ou não conseguimos escrevê-lo, já que é difícil se manter por tanto tempo nesse lugar de escrita.

E qual foi esse momento vital que impulsionou a escrita de Meus Desacontecimentos?

Nesse livro, há pelo menos dois movimentos diferentes. Num primeiro momento, escrevi sobre as pessoas anônimas que, com seus pequenos grandes gestos, fizeram de mim o que sou. Como a Lili da livraria [que deixou Eliane, então menina, ler o que desejasse e, depois, passou a contar com ela como "consultora" na aquisição de obras infantis para a loja] ou Luzia, a professora do meu pai, que nunca conheci, mas que é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Eu tinha sido convidada a pensar nos autores que tinham me influenciado, mas não consegui. Embora muitos tivessem me influenciado, o que tinha sido mais determinante para ter me tornado escritora eram essas pessoas, e eu queria contar sobre elas, mostrar essa delicadeza nem sempre percebida que vai construindo um outro tipo de DNA para nós. Mas, em 2011, vivi a minha maior crise com a palavra escrita e o livro mudou de rumo, ganhou outra densidade e se transformou explicitamente em um livro sobre a palavra.

Fale sobre essa crise.

Eu tinha acabado de enviar meu romance – Uma Duas – para a editora. Em seguida, embarquei numa reportagem a convite dos Médicos Sem Fronteiras, sobre doença de Chagas na Bolívia. Ao final da viagem, Sonia, uma menina de 11 anos com doença de Chagas, como a maioria naqueles povoados, me agarrou pelos braços e disse: "Não me deixe morrer". Eu já tive em contato com realidades-limite muitas vezes ao longo desses 26 anos de reportagem, realidades até mais trágicas do que essa, mas nunca tinha tido a experiência de um pedido feito diretamente a mim, a mim e a mais ninguém. Percebi ali que escrever sobre a Sonia, contar a história dela para o mundo, como eu disse a ela que faria, não seria suficiente para salvar a vida dela. Tive ali o meu maior enfrentamento com a impotência. Caí num buraco e pela primeira vez paralisei. Eu, que só sei viver escrevendo, não conseguia mais escrever. Estava tomada pela ideia de que, se não podia salvar a vida dela, de que adiantava escrever? Tive de fazer um movimento enorme para entender que, se contar a história dela para o mundo poderia ser insuficiente para salvar a vida dela, também era o possível. E o possível é pouco e muito ao mesmo tempo. E para sempre eu teria que andar sobre esse fio muito tênue entre a potência e a impotência. Consegui voltar a escrever, consegui contar a história de Sonia. Mas continuei sangrando. E passei a ficar obcecada com a busca pelos sentidos da palavra escrita na minha vida, obcecada por decifrar por que caminhos eu fui "salva" pela palavra escrita, exatamente por ter descoberto que a palavra salva e não salva, ao mesmo tempo. Foi neste momento que retomei o livro para fazer uma outra investigação dos meus abismos e transformá-lo na minha história com as palavras. Precisei escrever "meus desacontecimentos", não só por isso, mas também por isso. Esse livro é também uma busca por fazer marca dessa experiência e parar de sangrar. É uma reapropriação dos sentidos da escrita na minha vida.

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As histórias sobre sua família são muito tocantes, íntimas, e algumas bastante dolorosas,. Em algum momento você hesitou em contá-las? Como seus pais e parentes reagiram? Essa foi uma preocupação sua?

Não foi um livro fácil de escrever, embora me pareça que nenhum é. Mas eu tinha de parar, muitas vezes, e fazer outra coisa, porque sofria muito. Ao mesmo tempo me deu também muito prazer de escrever, porque fazia muito sentido me interrogar sobre os sentidos da palavra na minha vida. Na minha família não há idealização da infância. Não até a minha geração, pelo menos. Tenho uma relação muito boa com os meus pais na minha vida adulta, conversamos muito, sabemos que falar sobre aquilo que é doloroso pode ser libertador – e o que fica preso nas sombras interiores de cada um, por supostamente não poder ser dito, nos corrói aos poucos. Há que se lidar com a memória, a pública e a pessoal. Cada um lida de um jeito, eu me expresso pela escrita. Minha filha, por exemplo, acha que o livro tira as mulheres da família do lugar passivo que tinham nas versões mais correntes da crônica familiar e as instala no papel de protagonistas. O que era piada, folclore, vira tragicidade, a dor passa a ter nome e a ser pronunciada, e as mulheres deixam de ser silêncio, história contada a partir de um olhar masculino. Tenho amigas que, depois de ler o livro, estão passando por um período de interrogação sobre os próprios sentidos, tentando desembaralhar os fios de uma forma profunda. Depois que o livro vai para o mundo, cada leitor escreve seu próprio livro.

Qual a diferença entre a Eliane Brum repórter, que se dedica a ouvir e a contar histórias de vida de outras pessoas, a cronista/comentarista e a escritora de textos de ficção? Em qual dessas categorias se encaixa a autora de Meus Desacontecimentos?

Eu não me encaixo. Escrever, inclusive, é minha tentativa mais contundente de não me encaixar nem ter de me definir. Todas essas formas de escrita cabem em mim e espero me ampliar para outras, ainda por descobrir e experimentar. A demanda por identidade cada vez me interessa menos. Tenho vários eus convivendo dentro de mim, várias vozes que se expressam pela escrita. Meu pacto com o leitor é estar inteira em cada livro, em cada texto, nas palavras. Tão inteira quanto posso estar, já que me sei faltante, como todos.Tenho especial cuidado também de não definir um livro, ainda que entenda que há uma necessidade de classificação, até mesmo para saber em qual estante da livraria ele deve ficar. Mas sempre acho que definir um livro é dizer ao leitor a partir de que lugar ele deve lê-lo, o que é uma intervenção indevida na leitura de alguém. Sei que ao ser publicado o livro deixa de ser meu, na medida em que cada leitor vai fazer sua própria leitura, a partir de suas circunstâncias pessoais e do momento histórico em que vive. Cada leitor vai fazer do meu livro o seu livro.

Nos capítulos sobre a sua infância, você parece estar disposta a desmitificar essa fase da vida, tirando-lhe a aura de magia e felicidade. Fale um pouco sobre isso.

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Da infância, somos todos sobreviventes. Acho que perdemos possibilidades quando idealizamos a infância, essa criação da modernidade, dando a ela adjetivos como "pura" ou "inocente", adjetivos estendidos a todas as crianças, que não teriam nenhuma "maldade", muito menos sexualidade. Sabemos que isso está bem longe das verdades, no plural, e sabemos também porque lembramos. Mas esse mito da infância – e da infância feliz – é bem forte. E nos faz muito mal, porque recalca tudo aquilo que não cabe nessa vida em cor de rosa. Exatamente por pressentir que algo cheira mal nessa crença, nos esforçamos ainda mais para acreditar que foi "a melhor fase da nossa vida", aquela na qual fomos "absolutamente felizes". Tem de ser muito esquecido para acreditar nisso. E, depois, para manter essa ilusão intacta, fazemos o mesmo com nossos filhos, o que só pode dar errado, porque se estabelece uma relação familiar em que não há espaço para medo nem frustrações, os pais teriam de suprir tudo, preencher todos os buracos, e a vida mostra que isso é impossível. Em "meus desacontecimentos", ao buscar meu nascimento como palavra, prefiro olhar para a infância como o momento em que cada um nomeia seu "monstruário" pessoal, descobre quais são os monstros que assombram apenas a si.

Qual a sensação de se desnudar tanto em uma obra como este livro?

Essa tem sido a parte mais difícil. Em geral, o momento de lançar um livro, o momento em que o livro segue seu percurso longe de mim, é de alegria, quase catarse. Mas, em "meus desacontecimentos", me desnudo de forma mais explícita. Afinal, é o meu corpo de letras que ofereço ao leitor. Tive muita insônia durante a escrita e achei que ela acabaria quando mandasse o livro para a editora. Mas isso não aconteceu. Minha sensação é: "Agora que me desvesti, que talvez tenha tirado inclusive a minha pele, como me apresento ao mundo? Com que roupa, com que pele?". Não tem sido fácil.

Além da coluna para o site brasileiro do El Pais, você está escrevendo reportagens para algum veículo de imprensa? Há a possibilidade de a repórter ceder, de vez, lugar para a ensaísta e autora de livros ficcionais?

Cabe em mim várias escritas, preciso de várias vozes para me expressar. Banquei duas reportagens com minhas economias, mas ainda não cheguei ao momento de publicá-las. Senti que primeiro precisava publicar "meus desacontecimentos", exatamente por toda a história que está ligada a esse livro. Cada vez mais tento me escutar, entender e respeitar o meu tempo de viver as experiências de escrita e de torná-las públicas. Tenho outros projetos de reportagem em curso, estes financiados. Parto para eles assim que o livro iniciar sua história sem mim. São coisas que nunca fiz na reportagem, de certa forma voltarei a ser foca de novo. Esta é uma parte. Ao mesmo tempo, a ficção continua se ampliando em mim. Fiz um conto publicado numa coletânea (Entre as Quatro Linhas) lançada na Alemanha, primeiro, neste ano aqui. Vou para Nova York, no fim de abril, falar sobre o Uma Duas, no Pen World Voices Festival. Meu romance será lançado em inglês pela Amazon. E começo a ficar inquieta porque estou com uma história dentro de mim que precisa começar a virar letra no meu computador. Queria muito não morrer cedo, ainda que saiba que, mesmo se tiver a sorte de envelhecer com saúde, ainda vão ficar muitas histórias por contar, dentro e fora de mim. Uma pena a gente ter de morrer. Ao mesmo tempo, sei que, se não fosse a consciência da morte, que para mim é bem presente, eu poderia estar adiando a maior parte do que faço para um dia que não chegaria.

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MemóriasMeus Desacontecimentos - A História da Minha Vida com as PalavrasEliane Brum. Editora Leya, 144 págs., R$ 24,90.