O livro Calor, lançado no mês passado pela Companhia das Letras, é a prova de que certos jornalistas podem ser um tanto insanos. É o caso do autor, Bill Buford. Talvez a crise dos 50 anos o tenha levado a trocar o conforto de seu escritório na prestigiosa revista literária New Yorker, na qual era editor, pelo espaço claustrofóbico de uma cozinha infernal, em todos os sentidos da palavra: pequena, abafada (daí o nome do livro) e apinhada de colegas convivendo, muitas vezes, de uma maneira não muito saudável.
Para traçar o perfil de Mario Batali para a revista, dono do concorrido restaurante Babbo, em Nova Iorque, e apresentador do popular Show Molto Mario, exibido pelo canal Food Network, o jornalista tirou uma espécie de ano sabático, período em que se rebaixou por gosto próprio à função de "escravo da cozinha" (ou "puta da cozinha", como alguns cozinheiros gostam de chamar seus aprendizes).
O novo emprego rendeu-lhe dedos quase decepados, bolhas de queimaduras e humilhações freqüentes de seus superiores. É claro que tanto sofrimento não foi gratuito: além de aprender a cozinhar como um profissional (e dos raros), o esperto Buford transformou seu aprendizado em um best seller saboroso em que ele é o protagonista.
Ele conta, a certa altura do livro, o que o motivou a continuar, mesmo após já ter escrito o perfil: "Fiquei lá (na cozinha de Batali) durante seis meses, um tempo muito longo para fazer a pesquisa de um artigo para a revista, e lamentei ter de ir embora. Eu estivera perto de descobrir algo sobre comida, sobre mim mesmo. (...) O perfil foi publicado, mas continuei perturbado pela idéia de que eu estava perdendo uma oportunidade, e dois meses depois larguei meu emprego e retornei. Havia razões para que eu deixasse a revista, inclusive o fato de ter sido editor durante 23 anos, o que era suficiente", conta, a certa altura do livro Buford estudou Literatura na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e no Kings College, em Cambridge, Inglaterra. Foi editor-chefe durante 16 anos da revista literária Granta e editor de ficção por oito anos da New Yorker, da qual é hoje colaborador fixo.
Mas, sua compulsão obsessiva pela cozinha não é nova, só mudou de foco. Para escrever seu livro anterior, Entre os Vândalos, um retrato detalhado sobre a violência dos hooligans, ele acompanhou os torcedores fanáticos durante quatro anos.
Como personagem principal da nova aventura, Buford não se fixa nos dias de convívio com Mario Batali, em sua cozinha. Cada vez mais obcecado em "aprender o léxico essencial" do macarrão italiano ele é o tipo do cara que não sossega se não encontra respostas a questões como "a partir de que exato momento da história da humanidade o ovo passou a ser utilizado no preparo das massas?" , o jornalista rumou para a Europa com a idéia fixa de refazer o trajeto de formação do chef norte-americano.
Em pequenos burgos da Itália, aprendeu a preparar receitas de massas milenares e a cortar carne com Dario Cecchini, descrito como o melhor (e mais temperamental) açougueiro do mundo que além de tudo recitava trechos de A Divina Comédia, de Dante. Ao voltar aos Estados Unidos, após ter sido chamado por Dario de "um açougueiro por natureza", comprou um porco inteiro, decidido a destrinchá-lo e a prepará-lo em seu apartamento.
Chegou a pensar que, com sua experiência (que o fez superar o mestre Batali em alguns requisitos), poderia vir a tornar-se dono de um restaurante nova-iorquino. Mas, ao final da jornada, se deu conta de que não era isso que queria. "(...) Eu não quis esse conhecimento para me tornar profissional, e sim para me tornar mais humano".
O infatigável Buford termina seu livro com a frase "Tenho de ir para a França". Desta vez, para descobrir como Catarina de Médici, rica jovem florentina que se tornaria rainha da França, "entregou os segredos" culinários da Itália aos franceses. Parece que Buford jamais será um chef. É apenas um grande e ousado curioso, leia-se também jornalista, cansado da redação.
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Serviço: Calor, de Bill Buford (Companhia das Letras, 424 págs., R$ 49,50).
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