Vede que míseras as esperanças humanas ante a ordem do mundo, vede que míseras são elas, ante as sentenças escritas no céu em signos de fogo pelo Sempiterno!...
O centenário Ramsés, poderoso senhor do Egito, agonizava. Sobre o peito do soberano, a cuja voz milhões tremeram por meio século, abateu-se um sufocante fantasma e bebia-lhe o sangue do coração, a força do braço e por instantes até a lucidez do cérebro. Jazia o grande faraó, como um cedro derrubado, na pele de um tigre da Índia, com as pernas cobertas pelo manto triunfal do rei dos etíopes. E severo mesmo consigo próprio, chamou o mais sábio dos médicos do templo em Karnak e disse:
Sei que conheces remédios potentes, capazes ou de matar, ou de curar de uma vez. Avia-me um deles, adequado a minha enfermidade, e que afinal tudo venha a termo... quer de um modo, quer de outro.
O médico hesitou.
Pensa, Ramsés murmurou que desde o dia em que desceste dos altos céus o Nilo já teve cem cheias; acaso posso dar-te um remédio que fora incerto até para o mais jovem de teus guerreiros?
Ramsés quase põe-se sentado no leito.
Devo estar deveras enfermo clamou para que tu, sacerdote, te atrevas a aconselhar-me! Cala e cumpre o que ordenei. Vive seu trigésimo ano de vida meu neto e sucessor, Horus. E o Egito não pode ter um senhor incapaz de montar sua carruagem e de erguer sua lança.
Quando o sacerdote estendeu-lhe na mão trêmula o terrível remédio, Ramsés bebeu-o tal como o sedento bebe um caneco com água; depois chamou ao pé de si o mais célebre astrólogo de Tebas e ordenou que declarasse sinceramente o que mostravam as estrelas.
Saturno entrou em conjunção com a lua respondeu o sábio o que augura a morte de um membro de tua dinastia, ó Ramsés. Fizeste mal em beber hoje o remédio, porque são debalde os planos dos homens em face das sentenças escritas no céu pelo Sempiterno.
É natural que as estrelas hajam anunciado minha morte retrucou Ramsés. E quando isto há de suceder? voltou-se para o médico.
Antes de nascer o sol, ó Ramsés, ou estarás sadio como um rinoceronte, ou teu sagrado anel haverá de achar-se na mão de Horus.
Levai disse Ramsés em voz já mais baixa Horus ao salão dos faraós; que espere lá minhas últimas palavras e o anel, para que não haja interrupção no exercício do poder.
Horus chorou (tinha o coração repleto de piedade) a morte iminente do avô; mas como não podia haver interrupção no exercício do poder, encaminhou-se ao salão dos faraós, cercado por numerosa grei de criados.
Sentou-se na sacada cuja escadaria de mármore levava até embaixo, no rio, e cheio de indefinidas tristezas quedou-se a fitar os arredores.
Naquele exato momento a lua, junto da qual brilhava o astro funesto de Saturno, dourou as águas do Nilo, nos campos e jardins pintou as sombras das gigantescas pirâmides e algumas milhas em torno iluminou todo o vale. Embora fosse tarde da noite, nas choças e edifícios ardiam lâmpadas, sob o céu aberto o povo saíra das casas. Pelo Nilo deslizavam barcos, muitos, como em dia de festa; nos bosques de palmeiras, às margens da água, nos mercados, nas ruas e nas cercanias do palácio de Ramsés ondulava uma incontável multidão. E não obstante isso era tamanho o silêncio que até Horus adejava pelo ar o sussurro dos juncos e o uivo queixoso das hienas à cata de alimento.
Por que se juntam assim? interrogou Horus um dos cortesãos, apontando a imensa extensão semeada de cabeças humanas.
Querem saudar em ti, senhor, o novo faraó e ouvir de tua boca sobre as benesses que lhes destinarás.
Neste momento pela primeira vez golpeou o coração do príncipe o orgulho da grandeza, tal como golpeia a escarpada orla o mar que avança sobre ela.
E aquelas luzes, que significam? indagou ainda Horus.
Os sacerdotes foram à tumba de tua mãe, Zéfora, para trazer seus restos mortais às catacumbas do faraó.
No coração de Horus despertou de novo o pesar pela mãe, cujos restos em razão da misericórdia que demonstrou pelos escravos o severo Ramsés mandou sepultar entre a escravaria.
Ouço o relinchar de um cavalo disse Horus escutando. Quem sai a esta hora?
O chanceler, senhor, ordenou enviar mensageiros em busca de teu mestre, Iétron.
Horus suspirou à lembrança do querido amigo, a quem Ramsés exilou do país por haver inculcado na alma do neto repulsa pelas guerras e piedade para com o povo oprimido.
E aquela pequenina luz para além do Nilo?...
Com aquela luz ó Horus! respondeu o cortesão saúda-te confinada no claustro a fiel Berenice. O sumo sacerdote já mandou até ela a embarcação do faraó; e quando o sagrado anel fulgir em tua mão haverão de abrir-se as pesadas portas do claustro e haverá ela de retornar a ti, saudosa e amorosa.
Ao ouvir tais palavras Horus já não perguntou nada; calou-se e cobriu os olhos com a mão.
De súbito gemeu de dor.
Que tens, Horus?
Uma abelha mordeu-me a perna respondeu o príncipe empalidecido.
O cortesão, sob a luz esverdeada da lua, examinou-lhe a perna.
Agradece a Osíris disse por não ter sido uma aranha, cujo veneno a esta hora sói ser fatal.
Oh! Que míseras as esperanças humanas ante as sentenças irrevogáveis...
Neste ínterim entrou o comandante dos exércitos e, inclinando-se perante Horus, disse:
O grande Ramsés, sentindo que o corpo se lhe arrefece, enviou-me a ti com a ordem: "Vai até Horus, porque não demorarei neste mundo, e cumpre sua vontade como cumpriste a minha. Ainda que te ordene entregar o alto Egito aos etíopes e celebrar com tais inimigos fraterna aliança, faze-o tão logo vejas meu anel em sua mão, porque pela boca dos soberanos fala o imortal Osíris."
Não entregarei o Egito aos etíopes disse o príncipe mas celebrarei a paz, porque me compadeço do sangue de meu povo; escreve já o édito e tem à mão mensageiros montados, para que ao queimar dos primeiros fogos em minha honra ponham-se a caminho do sol do sul e portem consigo essa graça aos etíopes. E escreve ainda um segundo édito, para que desta hora até o fim os tempos não se arranque mais à boca de nenhum refém sua língua em campo de batalha. Assim o disse...
O comandante quedou-se de rosto voltado para o chão e depois recuou para escrever as ordens; o príncipe, por sua vez, instou para que o cortesão lhe examinasse de novo a ferida, pois doía muito.
Sua perna inchou um pouco, ó Horus disse o cortesão. O que não sucederia se ao invés de uma abelha uma aranha te mordesse!...
Entrou então no salão o chanceler do reino e, após inclinar-se perante o príncipe, disse:
O poderoso Ramsés, vendo que sua vista já se eclipsa, enviou-me a ti com a ordem: "Vai até Horus e cumpre cegamente sua vontade. Ainda que te ordene livrar dos grilhões os escravos e agraciar o povo com toda a terra, hás de empreendê-lo quando avistares em sua mão meu sagrado anel, pois pela boca dos soberanos fala o imortal Osíris."
Tão longe não vai meu coração afirmou Horus. Mas redige de pronto um édito que diminua pela metade o foro e os tributos pagos pelo povo e que os escravos tenham três dias livres de trabalho durante a semana e só sejam surrados a vara no lombo havendo decisão em juízo. E redige ainda um édito revogando o exílio de meu mestre, Iétron, que é o mais sábio e o mais nobre dos egípcios. Assim o disse...
O chanceler quedou-se de rosto para o chão, mas antes mesmo que saísse para redigir os éditos requeridos, entrou o sumo sacerdote.
Ó Horus disse a qualquer instante o grande Ramsés há de partir para o reino das sombras e seu coração há de ser pesado na infalível balança de Osíris. Quando porém o sagrado anel dos faraós fulgir em tua mão, ordena e ouvir-te-ei, ainda que devas derrubar o maravilhoso templo de Amon, porque pela boca dos soberanos fala o imortal Osíris.
Não hei de derrubar retrucou Horus mas sim erguer novos templos e aumentar os recursos da casta sacerdotal. Exijo apenas que redijas um édito determinando o solene traslado dos restos de minha mãe, Zéfora, às catacumbas e um segundo... ordenando a libertação de minha amada Berenice de seu confinamento no claustro. Assim o disse...
Sabiamente principias treplicou o sumo sacerdote. Tudo já está preparado para o cumprimento de tuas ordens e logo redigirei os éditos; quando os tocares com o anel dos faraós, acenderei esta lâmpada a fim de que anuncie ao povo tuas graças e, a tua Berenice, o amor e a liberdade.
Entrou o mais sábio médico de Karnak.
Ó Horus disse não me estranha tua palidez, pois Ramsés, teu avô, agoniza. Não pôde suportar a potência do remédio, que não lhe queria dar, esse soberano dos soberanos. Ficou junto dele apenas o substituto do sumo sacerdote, pois quando vier a falecer há de tirar-lhe o anel da mão e entregá-lo a ti em sinal de ilimitado poder. Mas tu empalideces inda mais, ó Horus?... acrescentou.
Examina minha perna gemeu Horus e caiu na cadeira dourada de braços esculpidos na forma de cabeças de gavião.
O médico ajoelhou-se, examinou a perna e recuou assustado.
Ó Horus sussurrou mordeu-te uma aranha muito venenosa.
Pois haverei eu de morrer?... em tal momento?... murmurou, com uma voz quase inaudível, Horus.
E em seguida acrescentou:
Pode dar-se em breve?... diz a verdade...
Antes que a lua se oculte por trás desta palmeira...
Oh não!... E Ramsés há de viver muito ainda?...
Como hei de saber?... Talvez já te tragam seu anel.
Neste instante entraram os ministros com os éditos concluídos.
Chanceler! clamou Horus tomando-o pelo braço. Se eu morresse agora cumpriríeis minhas ordens?...
Vive, ó Horus, a idade de teu avô! respondeu o chanceler. Mas ainda que venhas a achar-te logo depois dele ante o juízo de Osíris, cada édito teu há de ser executado, contanto que o toques com o sagrado anel dos faraós.
O anel! repetiu Horus. Mas onde ele está?...
Um dos cortesãos disse-me murmurou o comandante que o grande Ramsés já exala o último alento.
Mandei avisar meu substituto juntou o sumo sacerdote que imediatamente, assim que o coração de Ramsés cesse de bater, tire-lhe o anel.
Eu agradeço-vos! disse Horus. Como lastimo... ah, como lastimo... Mas enfim, não hei de morrer de todo... Restarão depois de mim as bênçãos, a paz, a felicidade do povo e... minha Berenice reaverá a liberdade... Falta muito ainda?... perguntou ao médico.
Tua morte está a mil passos de marcha de um soldado respondeu com tristeza o médico.
Não escutais se alguém vem lá?... interrogou Horus.
Silêncio.
A lua aproximava-se da palmeira e já lhe tocava as primeiras folhas; a fina areia sibilava baixinho nas clepsidras.
Muito ainda?... murmurou Horus.
Oitocentos passos retrucou o médico não sei, ó Horus, se conseguirás tocar todos os éditos com o sagrado anel, mesmo que o tragam agora mesmo...
Dai-me os éditos disse o príncipe tentando ouvir se alguém não corria dos aposentos de Ramsés. E tu, sacerdote disse voltando-se para o médico diz quanto me resta de vida para que eu possa ratificar ao menos as ordens que me são mais caras.
Seiscentos passos murmurou o médico.
O édito de diminuição dos tributos do povo e do trabalho dos escravos caiu das mãos de Horus.
Quinhentos...
O édito de paz com os etíopes deslizou dos joelhos do príncipe.
Não vem ninguém?...
Quatrocentos... respondeu o médico.
Horus refletiu e... quedou por terra o édito do traslado dos restos de Zéfora.
Trezentos...
O mesmo destino teve o édito de revogação do exílio de Iétron.
Duzentos...
Os lábios de Horus arroxearam. Com a mão contraída lançou ao chão o édito que proibia arrancar a língua dos reféns reduzidos a cativeiro e restou apenas... a ordem de libertação de Berenice.
Cem...
Em meio ao silêncio sepulcral ouviram-se passos de sandálias. Entrou correndo no salão o substituto de sumo sacerdote. Horus estendeu a mão.
Prodígio!... exclamou o recém-chegado. O grande Ramsés recobrou a saúde... Ergueu-se vigoroso do leito e ao nascer do sol deseja caçar leões... A ti, entretanto, Horus, como sinal de boas graças, convoca-te a acompanhá-lo...
Horus lançou o olhar que se extinguia para além do Nilo, onde cintilava a luz na prisão de Berenice, e duas lágrimas, sangrentas lágrimas, correram-lhe pelo rosto.
Não respondes, ó Horus?... indagou admirado o mensageiro de Ramsés. Não vês tu que está morto?... murmurou o mais sábio médico de Karnak.
Vede que míseras são as esperanças humanas ante as sentenças escritas pelo Sempiterno em signos de fogo no céu.
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