Stanley Kubrick era um cineasta interessado, sobretudo, em questões políticas. Todos os seus filmes tinham o intuito de discutir temáticas relativas ao homem e à vida em sociedade. Nunca eram meros exercícios estéticos ou de experimentação narrativa. "Stanley, embora fosse um otimista em seu dia a dia, era muito pessimista quanto ao futuro da humanidade. Acreditava que estávamos cavando nossa própria sepultura, e trazia esse ponto de vista a seus filmes." A afirmação é do produtor e cineasta Jan Harlan, que além de cunhado do diretor norte-americano, trabalhou com o realizador desde o início dos anos 1970 até a sua morte, em 1999, em longas-metragens como Laranja Mecânica (1971), Barry Lyndon (1975), O Iluminado (1980), Nascido para Matar (1987) e De Olhos Bem Fechados (1999).
Harlan falou, na última terça-feira, à plateia que lotou o auditório da Fundação Álvares Penteado (Faap), onde também foi exibido o documentário Era Uma Vez... Laranja Mecânica, do francês Antoine de Gaudemar, dentro da programação da 35.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O filme reconstitui tanto o processo de produção quanto de lançamento, além da repercussão da obra-prima de Kubrick, lançada em 1971. O produtor é uma de suas principais vozes.
Baseado no inventivo romance homônimo do escritor britânico Anthony Burgess, que chegou às livrarias nos anos 1960, Laranja Mecânica foi um dos filmes mais polêmicos e lucrativos na carreira de Kubrick. Conta a história de Alex, um jovem inglês em algum lugar do futuro que, ao lado de dois amigos, empreende uma longa jornada marcada por atos de extrema violência, espancando idosos sem-teto, torturando um escritor e assassinando uma mulher que vive acompanhada de seus gatos.
Depois de preso, Alex é submetido a um tratamento de reabilitação psicológica e social que toma como inspiração os métodos da terapia comportamental, muito em voga nos países de língua inglesa à época das filmagens: forçam-no a assistir, de olhos bem abertos, a horas e horas de cenas brutais. Acabam anulando seu senso de individualidade, mas não apagam de todo os instintos de Alex, dos quais o Estado irá se servir no desfecho da trama, mais sombrio do que o do livro que o originou.
Para Harlan, Laranja Mecânica é exemplar na filmografia de Kubrick. Foi um projeto longamente planejado, pensado nos mínimos detalhes, da escolha do elenco à concepção visual. Malcolm McDowell, que interpreta Alex, foi escolhido depois de o cineasta assistir, ao lado da mulher, Christine, ao filme Se (1968), que deu ao diretor inglês Lindsey Anderson a Palma de Ouro.
O figurino do trio de personagens centrais de Laranja Mecânica foi escolhido por conta de uma sugestão de McDowell, que mostrou a Kubrick seu uniforme de críquete, que acrescentou os coturnos pretos e fez com que os atores vestissem, do lado de fora, os protetores da genitália durante a prática do esporte. Por fim, o chapéu-coco, outra sugestão do protagonista, foi incorporado por ser, à época, uma espécie de símbolo do establishment londrino. Muitos creem que, rodado na aurora da década de 1970, esses trajes teriam influenciado o movimento punk na Inglaterra.
Uma revelação interessante do filme de Gaudemar do qual Harlan, que é irmão de de Christina Kubrick, também participa diz respeito à rodagem da principal cena do longa: a invasão bárbara da casa do escritor que apanha ao ver a mulher ser violentada seguidamente pelo trio infernal de Alex. Ao contrário do que muitos pensam, nem sempre Kubrick tinha tudo pensado milimetricamente antes de filmar, embora ele desse enorme importância à fase de pré-produção.
Stanley e a equipe ficaram horas discutindo como rodar a cena, até que surgiu a ideia de improvisar. Ele pediu que os atores cantassem e dançassem, e Malcolm começou a entoar "Singin in the Rain", tema-título do clássico Cantando na Chuva, de Stanley Kramer e estrelado por Gene Kelly. A canção, que, segundo Kubrick, representava o ápice da euforia hollywoodiana, em Laranja Mecânica traduzia o clímax do êxtase de Alex.
Sucesso
Lançado em 1971 no Reino Unido, e depois no resto mundo, o filme se tornaria um sucesso de bilheteria. Na Grã-Bretanha, entretanto, a reação da imprensa foi dividida. Enquanto alguns críticos identificaram seus méritos estéticos de imediato, muitos enxergaram apenas a violência e acusaram Laranja Mecânica de incitar os jovens à barbárie. "Uma bobagem. Nenhum filme é capaz disso. Pelo contrário, o cinema capta o que está acontecendo na sociedade, e não o contrário", disse Harlan. A controvérsia chegou a tal ponto que Kubrick optou por retirá-lo de cartaz no país, onde voltaria a ser exibido somente após a morte do cineasta, em 1999, aos 70 anos.
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