Livros
Rios de Sangue:José Antônio Severo. Record. 462 págs., R$ 59. Romance.
Cinzas do Sul:José Antônio Severo. Record, 630 págs., R$ 59. Romance
Em Rios de Sangue e Cinzas do Sul, o jornalista gaúcho José Antônio Severo chama para si a responsabilidade de contar e unir conflitos armados que varreram o Sul do Brasil e os países vizinhos entre o fim do século 18 e quase todo o século 19. A formação da nação brasileira não passou incólume.
São 100 anos de guerras. Muitas batalhas internas e externas estão retratadas em detalhes na obra dividida em dois livros. Vai desde a disputa entre Espanha e Portugal pela manutenção das demarcações do Tratado de Tordesilhas que dividiu as então novas terras da América entre as duas, também então, potenciais europeias , passa pela luta para manter o Uruguai como província brasileira (Cisplatina), pela Guerra dos Farrapos que por um período de quase 10 anos separou o Rio Grande do Sul do resto do país , culminando com a Guerra do Paraguai, que quase varreu do mapa os vizinhos do outro lado do Rio Paraná.
Para narrar todos esses acontecimentos, Severo usa sua experiência de jornalista, com passagens pelo O Globo, Zero Hora e Gazeta Mercantil e revistas Veja e Exame, para amarrar e dar unidade aos fatos históricos. O texto flui bem, mas requer muita atenção dos leitores devido à longa galeria de personagens e locais por onde se passam as batalhas que desfilam pelos dois livros lançados pela Editora Record.
"Do ponto de vista histórico, os 100 anos entre a invasão espanhola e o término da Guerra do Paraguai são uma sucessão de acontecimentos independentes. Entretanto, para as populações que tiveram duas guerras em cada geração, foi tudo a mesma coisa. Assim, como jornalista posso dizer que é uma guerra só", afirma Severo.
Rios de Sangue e Cinzas do Sul ajudam a entender um pouco da formação da identidade latino-americana. Para narrar os acontecimentos, Severo usa como personagem central Manuel Luís Osório, o general Osório. Famoso nos campos de batalha, herói brasileiro, Osório nasceu e conviveu com quase todas as disputas bélicas no Rio Grande do Sul, Argentina, Uruguai e Paraguai. Venceu e foi vencido em diversas guerras. Foi político e homem de confiança do império. Virou nome de cidade, ruas, colégios, parques e praças pelo país. Em Curitiba, Osório dá nome a uma das principais praças da cidade. Mas sua fama não ficou para a posteridade.
"O general Osório é literalmente um ilustre desconhecido. Osório e o Duque de Caxias foram as personalidades históricas dominantes no Brasil e na Bacia do Prata no século 19. Por razões ideológicas [serviram a uma monarquia] foram apagados da História pelo regime republicano", diz Severo.
Natural de Caçapava do Sul, na região da Campanha, no Rio Grande, o jornalista usa a história oral e familiar, além de uma extensa pesquisa documental, para construir o que ele considera um romance histórico. Severo usa diálogos fictícios para unir as passagens, ajudando na compreensão do período que marcou a consolidação do Brasil.
Leia abaixo a entrevista com José Antônio Severo, ele fala um pouco da carreira e dos novos trabalhos "Rios de Sangue" e "Cinzas do Sul":
Como podemos classificar seus livros?
Acredito que meus livros possam ser classificados no gênero de romance histórico, que se nutre dos mesmos elementos do livro reportagem e do jornalismo literário. Este gênero atualmente está muito difundido pelo mundo, impulsionado pelo mercado de leitores que apreciam História, mas preferem uma narrativa que lhes proporcione a formação mental das imagens que comporiam os acontecimentos.
Por isto, o romance histórico moderno acrescenta à narrativa ficcional tantos elementos do jornalismo, ou seja, com informações precisas e com o contraponto de várias fontes. No caso da História, com versões dos dois lados envolvidos nos conflitos. No meu caso, procuro apresentar as versões lusitanas e hispânicas, embora fique claro que o autor é um brasileiro.
Quanto tempo levou para escrever os livros e como estruturou o texto e os personagens?
Para uma resposta bem larga poderia dizer que levei minha vida inteira para escrever estes livros. As primeiras informações sobre o tema tive ainda criança, ouvindo a memória oral, que era muito viva nos tempos de minha infância, em Caçapava do Sul. Esta localidade é hoje integrante da Região da Campanha. Como diz o nome na subdivisão regional do Rio Grande do Sul, Campanha é a zona de guerra. Campanha é uma das denominações para as guerras em nosso idioma. Seus habitantes têm a História na crônica familiar.
Essa é a primeira fase da pesquisa: retomar as memórias e chegar essa tradição confrontando-as com os fatos registrados pela História oficial. Na segunda fase, que se iniciou em 2006, reli toda a literatura sobre o tema, pesquisando em fontes argentinas, brasileiras, paraguaias e uruguaias. Feito isto, viajei pela região dos acontecimentos, resgatando historiografia e conversando com os chamados micro-historiadores, gente das cidades que conhece os fatos e os lugares onde os acontecimentos se deram.
No Paraguai, onde se desdobra o maior drama da História sul-americana, estive em todos os lugares históricos. Curioso, por exemplo, é registrar que se encontra cidades intactas como eram há 160 anos. Normalmente se pensaria encontrar ruínas. Entretanto, a guerra do Paraguai não produziu quase nenhuma destruição, como se pensa. Poder-se dizer que fora a igreja de Humaitá, fortemente bombardeada pela esquadra brasileira, tudo está como nos tempos de Solano López. Até sua casa em Paso de Pátria está intacta, abrigando um museu histórico.
No final, como todo o material na mão, inicia-se a redação final do livro. Trabalhei como numa redação, 10 horas por dia. Levei um ano para escrever os dois volumes, redigindo em ritmo de jornal, começando na primeira linha e pondo o ponto final na última letra, tal qual se encontra no texto impresso.
O senhor acredita que o uso da linguagem jornalística torna a história mais acessível?
Com certeza o uso da linguagem da imprensa facilita sobremaneira o entendimento dos fatos, da História, portanto. Com essa técnica a que o leitor está habituado no dia a dia, é fácil entender os fatos como eles se passaram.
Não é só apenas o palavreado do jornalismo, mas a forma de entrar nos assuntos, trazendo para a atualidade acontecimentos do passado. O que não é a História senão a trajetória da humanidade? Cada época escreve de um jeito, mas seus atores são seres humanos. Por isto, não é nenhuma traição aos fatos relatá-los em linguagem contemporânea. Por exemplo: pode-se usar o que no jargão jornalístico se chama de economês para falar dos negócios, assim como de política e, mesmo, da vida social em tempos passados.
O senhor constrói a estrutura dos livros relacionando as diversas guerras e batalhas na Região Sul como uma sucessão de episódios...
Do ponto de vista histórico os 100 anos entre a invasão espanhola e o término da Guerra do Paraguai são uma sucessão de acontecimentos independentes. Entretanto, para as populações que tiveram duas guerras em cada geração, foi tudo a mesma coisa. Assim, como jornalista posso dizer que é uma guerra só.
Dou razão aos historiadores que dividem esse tempo em vários processos, pois cientificamente são processos distintos. Aí entra a diferença entre literatura de ficção e jornalismo com a História dos acadêmicos. O estudante é apresentado à versão oficial dos fatos, algo que tem a ver com muita coisa, dentre as quais a ideologia predominante em cada época. Hoje, a História oficial do Brasil é a história alternativa dos anos 1960. No romance não há esse compromisso. O leitor não precisa ver aquilo como um dogma, mas sim como parte da aventura humana. Por isto, vale ler os romancistas, pois apresentam nosso país como uma grande epopeia de seus fundadores e construtores, enquanto na história oficial procura situar as pessoas como vítimas de um processo.
Quais foram suas fontes de pesquisa?
Muito importantes foram os historiadores e colaboradores que apresento nas páginas de rosto do livro. Depois os autores citados na bibliografia. Se o leitor prestar atenção verá que ao lado de grandes nomes que escreveram clássicos estão autores desconhecidos, mas que foram a campo buscar detalhes de acontecimentos. Todos valem igualmente. Por fim, cito meu tio Eurico Saldanha Souto, recentemente falecido, que tinha muito mais nítido do que eu toda a tradição oral, pois ouviu muitas histórias dos próprios protagonistas, como foi o caso do meu narrador, meu bisavô Delphino Rodrigues Souto.
O país tem acervo documental que permita contar a história da formação do Brasil?
É impressionante como há informação histórica no Brasil. Qualquer pequena cidade tem material preciso a ser pesquisado. Recentemente os novos historiadores estão indo a esse material, que se enriquece dia a dia. A gente sempre diz que o Brasil fundou-se num despacho burocrático, pois nosso primeiro cronista foi um escrivão, Pero Vaz e Caminha, e não um poeta como Luís de Camões, que escreveu a epopeia dos navegadores. Há muito material. Neste caso faço reverência aos acadêmicos, que têm competência técnica para trabalhar esse material e peço-lhes que vão fundo, pois sem eles e seus trabalhos nenhum romancista histórico teria condições de escrever com seriedade.
O general Osório é homenageado em várias cidades do país com nomes de logradouros. O senhor acha que as pessoas sabem quem foi Osório? E em sua opinião qual foi a importância dele para a Nação?
O general Osório é literalmente um ilustre desconhecido. Osório e o Duque de Caxias foram as personalidades históricas dominantes no Brasil e na Bacia do Prata no século 19. Por razões ideológicas (serviram a uma monarquia) foram apagados da História pelo regime republicano. Quando Manoel Luiz Osório, o general, que foi marquês do Herval, mas que ninguém nem mesmo em seu tempo o conhecia pelo título nobiliárquico, aparece em meu livro os leitores ficam boquiabertos. Aconteceu o mesmo com Dom João VI no livro de Laurentino Gomes (1808), que o Brasil só conhecia através de uma paródia, uma comédia cinematográfica. Ou os navegadores de Eduardo Bueno. Aí então a nossa juventude descobre o Brasil.
Osório foi um soldado e um político, nessa ordem, num período em que o desafio fatal para o Brasil era traçar suas fronteiras e consolidar sua unidade interna. Será pouco isto? Certamente hoje somos a sexta economia do mundo com base em nosso tamanho territorial e tudo que temos dentro de nossas fronteiras, pois nossos índices de civilização ainda estão entre os piores de mundo. Osório e Caxias nos legaram o gigante adormecido. Os estadistas e demais empreendedores deixam ainda muito a desejar, pois na parte que lhes toca estamos entre os piores do mundo.
O senhor inclui personagens de sua família nos livros. A história oral ajudou muito na composição da obra?
Há dois personagens de minha família, o capitão Delphino Rodrigues Souto e o coronel João Antônio Severo. Delphino é o narrador, portanto um personagem literário que uso exatamente para dar voz a essa história oral que jorra pelos paralelepípedos das ruas da Caçapava do Sul. Ele é histórico, mas também é personagem. Explico: onde digo quem ele esteve, realmente esteve lá. Mas ele assume como sua uma visão da história que é um consenso da história oral. Mostro aqueles acontecimentos como as pessoas de minha região os viram e contaram às novas gerações. Foi como está ali que nós herdamos nossa cidade, nosso estado e nosso país. Não é um livro regionalista. Pelo contrário, ele é multinacional visto com olhos brasileiros. Já o coronel João Antônio aparece incidentalmente, em acontecimentos dos quais participou, mas sem importância na narrativa. Eu o citei para que não ficasse com ciúmes de Delphino (risos).
Qual a importância de seu livro para a História do Brasil?
Acho que meu livro abre caminho para que as pessoas comuns possam entender o nosso país. Esta é a função da História. A literatura é, em parte, lazer ou entretenimento. Assim completa-se. Espero que meu livro contribua para isto e que possa ser entendido nos países vizinhos para que nossos aliados de hoje nos conheçam e nos compreendam.
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