Calcula-se que um número entre 70 e 90 longas-metragens, entre ficções e documentários, sejam produzidas no Brasil todos os anos. Um número respeitável, que ainda pode crescer, mas já atesta a vitalidade da produção nacional. Mas, quando se analisa o acesso que o público tem a esses títulos, a coisa muda: quando conseguem ter algum tipo de distribuição, essas obras enfrentam grandes dificuldades para chegar ao mercado exibidor, e acabam sendo vistas por um público muito restrito, o que é desolador, uma vez que muita delas são realizadas com recursos públicos, por meio das leis de incentivo.
Por conta dessa realidade, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que se estende até o dia 2 de novembro na capital paulista, vem desempenhando papel fundamental na difusão do audiovisual nacional, sobretudo da produção de realizadores em início de carreira. Tanto que premia, com o troféu Bandeira Paulista, filmes de diretor com no máximo dois longas-metragens no currículo, nacionais e internacionais.
Na seleção deste ano, 14 títulos nacionais estão no páreo, entre obras ficcionais e de não ficção. O nível é irregular, como é de se esperar de produções assinadas por cineastas que iniciam sua carreira. Mas um traço comum é identificável entre os longas-metragens: a variedade tanto nas temáticas abordadas como na formas narrativas.
A reportagem da Gazeta do Povo vai falar de quatro filmes diversos entre si que, se apresentam problemas, também comprovam a vitalidade e a busca por caminhos diferentes de se fazer cinema.
Cores é o longa de estreia do cineasta Francisco Garcia. Rodado em preto e branco, opção estética que brinca ironicamente com seu título, o filme retrata o dia a dia de três jovens adultos da classe média de São Paulo que se digladiam com a imobilidade de suas vidas.
Lúcio (Pedo di Pietro) é tatuador, vive com a avó viúva, idosa e doente, e dela depende para ter uma vida confortável. Seu melhor amigo, Luiz (Acauã Sol), é vendedor em uma drogaria e, para ganhar uns trocados a mais, vende remédios de tarja preta sem receita. Sua namorada, Luana, é funcionária de uma loja de peixes ornamentais e, vizinha de um aeroporto, sonha viajar, fugir de seu cotidiano cinzento e sem perspectiva.
Logo na primeira sequência de Cores, vemos a imagem do ex-presidente Lula, quando ainda estava no cargo, falando sobre como, apesar da crise econômica internacional, o país vem mantendo seu crescimento, permitindo a ascensão social de boa parte da população. O discurso entra em choque com a vida do trio, que parece condenado, muito por conta de uma certa falta de iniciativa, a se manter paralisado, repetindo erros, mergulhado em frustrações.
Surrealismo
Se Cores é uma obra expressionista, que se utiliza da ausência da cor para falar de uma vida desbotada, estéril, Jardim Atlântico, do diretor pernambucano Jura Capela, vai na direção contrário, optando pelo surrealismo e pelo onírico para discutir o caráter labiríntico das relações amorosas. Seu foco principal é na tumultuada relação entre Syl (Sylvia Prado) e Pierre (Mariano Mattos Martins), um casal de namorados em profunda crise. Enquanto ele aos poucos desenvolve um sentimento de posse doentio, ela defende com unhas e dentes a sua liberdade, o direito de conviver com seus amigos e amar como e do jeito que quiser.
Embora tenha boas sacadas visuais, com planos exuberantes, e uma narrativa em momentos instigantes, falta-lhe dramaturgia para sustentar suas pretensões de fazer um filme inovador.
Documentários
Em torno de 40% dos longas que chegaram aos cinemas neste ano são documentários, e isso se reflete na seleção da Mostra de SP. Vários dos filmes em competição são obras de não ficção.
A Arte de Interpretar A Saga da Novela Roque Santeiro marca a estreia como cineasta da jornalista, roteirista e diretora Lúcia Abreu. O documentáro resgata a história da novela Roque Santeiro, um dos maiores sucessos na história da televisão brasileira.
Adaptação de O Berço do Herói, peça teatral do dramaturgo Dias Gomes, a primeira versão da novela começou a ser produzida em 1975, quando foi impedida de ir ao ar no dia da estreia, por determinação da censura, que a considerou subversiva e ofensiva aos valores morais da sociedade.
Dez anos mais tarde, o projeto foi desenterrado e ganhou adaptação de Aguinaldo Silva, sob a supervisão de Dias Gomes, que só escreveu os últimos 18 capítulos. O filme revela os bastidores de ambas as versões e conta, por exemplo, por que Betty Faria, a viúva Porcina da novela original, não quis participar do remake, e o papel acabou indo parar nas mãos de Regina Duarte.
Revelação
Convencional, mas bem informativo, o filme tem depoimentos reveladores de Lima Duarte (Sinhozinho Malta), José Wilker (Roque Santeiro), de vários integrantes da equipe técnica e de Aguinaldo Silva, que admite ter entrado em choque, mas se reconciliou, com Dias Gomes quando a Globo decidiu que o dramaturgo escreveria o desfecho da trama.
Mais interessante é o documentário Pra Lá do Mundo, de Rodrigo Studart, que investiga a vida em uma pequena localidade chamada Capão, na região da Chapada da Diamantina, nna Bahia. Um lugar onde pessoas do Brasil inteiro e de várias nacionalidades decidiram recomeçar sua vida, junto à população local, buscando fugir da sociedade de consumo e levar uma vida mais natural, fazendo experimentações religiosas, artísticas e sociais as mais diversas.
O jornalista viajou a convite da 36.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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