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Relativizando o modernismo

Desdobramentos da Semana de 22 atualizaram a linguagem visual da arte brasileira contribuindo para a criação de uma identidade nacional motivada pelo contexto europeu

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  • Poemas coloniais de Osawald de Andrade tinham influência do primitivismo

A Semana de Arte Moderna de 1922 é o ícone histórico de uma revolução literária que vinha ocorrendo no Brasil e se tornou, pela centralidade econômica de São Paulo, a própria certidão de nascimento da urbe moderna. Assim, o modernismo paulista virou sinônimo de Modernismo, embora tenham existido outras versões, como o modernismo carioca, menos maquinal e mais humanizado. Essas manifestações irão compor a face moderna da literatura nacional, que sofre uma ampliação a partir da explosão criativa que se deu nos anos de 1920. Sem dúvida, a Semana foi o seu evento mais ruidoso, e teve um papel disseminador muito grande.

Quando tudo já havia passado, numa avaliação rigorosa de sua geração, Mário de Andrade (o grande explicador do Modernismo), vai lembrar os três princípios fundamentais do movimento: "o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional" ("O Movimento Modernista"). Poderíamos dizer que a principal função da Semana de Arte Moderna foi atuar para corrigir os atrasos da arte nacional, liberando os criadores para as experimentações – primeiro e segundo princípios de Mário. E ela fez isso escandalizando o meio artístico: acadêmico, comportado e estável. Negar o passado com blagues, com desconstruções da lógica da linguagem e com a afirmação do disforme era limpar o terreno. Os excessos queriam inicialmente devastar tudo para depois construir o novo. O filósofo Walter Benjamin definiu este sentimento revolucionário: "O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaços; só uma atividade: despejar" (Rua de Mão Única. Brasiliense, 3ª. edição, 1993, p. 236). A década de 20 como um todo, portanto, foi para os modernistas um tempo de despejo da arte velha.

Escrevia-se para pôr abaixo os estilos instituídos, despovoando terrenos garantidos pela lei do bom gosto para se edificar a grande literatura brasileira, que viria justamente na década seguinte, com Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes na poesia e José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado na prosa, entre outros. Esta literatura não será mais paulista, e sim brasileira no seu sentido mais heterogêneo.

Estes anos iniciais do Modernismo, pós-Semana de 22, são mais de programas estéticos, de proselitismos em artes, de implosão do garantido. Por isso, em A Ideia Modernista (Topbooks, 2002), Wilson Martins vai concluir, contra o pensamento hegemônico, que o Modernismo foi uma escola de obras falhadas, em que se buscava uma originalidade a todo custo, com o intuito de testar instrumentos de expressão que estavam subitamente disponíveis para o artista (o citado direito à pesquisa). O movimento não teria grandes obras, mas obras representativas: "Por obra representativa deve-se entender aqui as que refletiram na concepção e na realização os princípios estéticos, os postulados e os valores modernistas; as que foram escritas com a consciência predominante de vanguarda; as que preferiram ser novas a ser grandes" (p.181). Esta passagem de obras programáticas para obras literárias que herdam mas podam os excessos das conquistas anteriores vai definir o que entendemos por literatura moderna.

Primitivismo

Um centro de força é comum aos dois momentos: a descoberta do valor da infância. Ao buscar as influências das vanguardas europeias, entre buzinas de fordes e simultaneísmos urbanos, os escritores se depararam com o culto do primitivo. O primitivismo, que tinha um valor de negação do acúmulo de história e cultura da Europa, chega aqui como uma influência estranhamente autóctone. O Brasil profundo era a própria encarnação desta anticivilização. E os escritores vão em busca das imagens desta outra pátria, que agora tem valor cosmopolita de arte. Haverá uma devoção a este universo nos poemas coloniais de Oswald de Andrade, no homem-síntese que foi Macunaíma, de Mário de Andrade, na lenda da Cobra Norato, de Raul Bopp, etc. Consequentemente, ocorrerá uma heroicização da infância do país, quase sem história, e dos próprios autores, que se fazem vértices de uma modernidade de estaca zero. Em Pau-Brasil (1925), Oswald de Andrade definirá a sua arte: "Aprendi com meu filho de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que nunca vi". O ensinamento vem da infância, que suspende as mediações intelectuais e coloca os escritores experimentando olhares de primeira vez. É desta atitude que nasce a literatura moderna. Em 1928, Macunaíma aparecerá como um ser ambivalente, símbolo desta nova postura, pois se assume como um "menino-home", com corpo taludo e carinha e atitudes de piá. Já o extemporâneo poema "Cobra Norato" (1931) foi inicialmente imaginado como um conto destinado às crianças. Opera-se, portanto, uma infantilização artística de caráter mítico e caricaturesco, que define o jovem país como uma terra dos inícios.

É na geração seguinte, a de 30, que a infância como programa dará lugar para as infâncias pessoais localizadas social e historicamente. A literatura abandona o seu caráter burguês, de explosões de alegria por se descobrir num paraíso em que máquinas e animais míticos se fundem, para enxergar o tom trágico e épico das infâncias reais, eternizadas em grandes obras-primas, como a poesia de Drummond, a ficção de Zé Lins do Rego, iniciada com Menino do Engenho (1932), as infâncias sem linguagem de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938) ou a aventureira de Jorge Amado, como em Capitães de Areia, 1937. A infância passa a ser um fator de amadurecimento estético e social do homem brasileiro. Estava estabilizada a consciência criadora nacional de que falava Mário de Andrade, principiando o tempo das grandes obras da modernidade.

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