A poucos metros do Checkpoint Charlie, posto aduaneiro que entre 1961 e 1989 serviu como ponto de travessia de estrangeiros que iam de um lado a outro da Berlim dividida, funciona o Museu do Muro. Parece interessante à primeira vista, mas é provável que, após pagar 12 euros (quase R$ 30) para percorrer salas recheadas com centenas de fotos históricas e objetos que relembram as mais inusitadas tentativas de travessia da fronteira de concreto, o visitante sinta um certo enfado. Talvez porque, no fim das contas, a exposição não oferece mais do que uma versão enlatada do drama de milhões de alemães convertidos à força ao socialismo.
Na rua em frente, dois atores interpretam soldados que vigiavam as áreas a leste e oeste do checkpoint. Os inimigos fantasiados conversam animadamente enquanto posam para os turistas e, claro, cobram pelas fotos. Na Alemanha reunificada após o colapso do socialismo soviético, as tragédias da Guerra Fria viraram artigos de butique.
Mais do que imagens ou objetos, conhecer a verdadeira história do país dividido exige algo impossível de se expor em vitrines: a complexidade característica de qualquer ser humano, com seus motivos, sentimentos e contradições. Ainda mais quando se trata de um período tão recente, repleto de histórias à espera de uma conclusão. É disso que fala a jornalista australiana Anna Funder em seu livro de estréia, Stasilândia, ao relatar sua visita a um museu sobre a Stasi, a polícia secreta da extinta República Democrática Alemã (RDA, a Alemanha Oriental): "envidraçaram coisas não terminadas".
"Para que alguém consiga entender um regime como o da RDA, é necessário contar as histórias das pessoas comuns. É preciso ver como elas lidam com seu passado", resume uma das vítimas da Stasi ouvidas pela jornalista. Fruto de uma pesquisa de quatro anos, Stasilândia resultou em uma bem-sucedida tentativa de ultrapassar as "barreiras de vidro" e alcançar o cerne de qualquer história: seus personagens.
A busca começou quando, em meio a uma despretensiosa temporada na Alemanha, Anna Funder topou com a história da jovem Miriam que, anos após a queda do muro, não havia descoberto sequer se o marido, morto pela Stasi, fora enterrado ou cremado. Após ouvir outros tantos relatos semelhantes, a jornalista quis ir mais longe. Anunciou num pequeno jornal que procurava ex-oficiais e colaboradores informais da antiga polícia secreta, garantindo anonimato.
Não foi difícil encontrá-los. Poucos regimes totalitários se esforçaram tanto em vigiar seus próprios cidadãos. Enquanto o Terceiro Reich de Hitler mantinha um agente da Gestapo para cada 2 mil pessoas e a soviética KGB obedecia a proporção de um para 5.830, cada um dos 97 mil funcionários da Stasi respondia por 63 alemães orientais. Se incluídos os 173 mil informantes recrutados entre a própria população, a conta é de um colaborador da polícia secreta para 6,5 habitantes.
À RDA, era preciso antecipar o movimento das pessoas rumo ao território inimigo e proteger o ideal socialista dos subversivos, muito embora o governo insistisse na idéia de que o lado oriental era o melhor dos mundos: um território que reunia apenas alemães sem qualquer ligação com o nazismo ou o holocausto (os culpados estavam todos do outro lado), que tinha no pacifismo e no pluripartidarismo as bases de sua democracia e que desconhecia o significado de palavras como "prostituição" ou "desemprego".
Independentemente disso, no fim da década de 80 os arquivos da Stasi tinham atingido tamanho equivalente ao de todos os documentos reunidos pela Alemanha entre a Idade Média e a Segunda Guerra. Calcula-se que, mantido o ritmo atual, o trabalho de reconstituição dos papéis que a Stasi conseguiu picotar às vésperas de seu colapso só ficará pronto em 400 anos. O significado prático dessa estatística é que, assim como Miriam, muitos ex-alemães orientais correm o risco de jamais saber por que, e como, parentes, amigos e familiares desapareceram sob a custódia da Stasi. Tampouco saberão por que mistério não conseguiam determinados empregos ou vagas em universidades, e nem verão os responsáveis pela destruição de suas vidas irem a julgamento, por falta de provas.
Apesar da abundância de histórias que coletou, Anna Funder felizmente resistiu à tentação de fazer de seu livro um minucioso relatório sobre o aparato investigativo da RDA. Não exagera no número de personagens, evita a gélida reprodução de documentos oficiais e relega a estatística ao papel de suporte para o que de fato importa.
O desconforto provocado por relatos como o de uma mãe separada do filho recém-nascido com seqüelas de um parto difícil, o menino não teria tratamento adequado nos hospitais do Leste é compensado por trechos mais amenos, como o que conta o curioso destino do jovem desenhista encarregado de traçar a linha por onde passaria o muro. Além da atração natural provocada por seus temas, o texto da australiana é leve (na medida do possível) e ágil; conduz o leitor a atravessar rapidamente os 28 breves capítulos do livro.
Embora Stasilândia seja um livro-reportagem e, como tal, obedeça aos princípios básicos do jornalismo, sua autora não escorrega para uma objetividade hipócrita, e revela sem pudores sua irritação com os mais cínicos defensores dos métodos da Stasi. Por outro lado, não esconde o choque que sentiu ao ouvir histórias mais dramáticas, sem, no entanto, sucumbir a um sentimentalismo gratuito. Nessa história de um país e milhões de vidas divididas por um muro, Anna Funder deixa bem claro o lado que escolheu.
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Serviço
Stasilândia, de Anna Funder. Companhia das Letras, 376 págs., R$ 49.