A anedota é uma das mais famosas no mundo do jazz. Miles Davis (1926 1991) sobe ao palco com sua banda diante de 600 mil pessoas no festival da Ilha de Wight e toca por 38 minutos algo que não era jazz nem rock ou qualquer outra coisa. Depois, alguém pergunta para Miles qual era o nome da música. "Chame de qualquer coisa" foi a resposta do trompetista.
O episódio é narrado no documentário Miles Electric A Different Kind of Blue, lançado ao DVD no Brasil pela ST2. Produzido no ano passado e dirigido por Murray Lerner, teve sua estréia mundial no New York Film Festival e fala sobre a guinada elétrica simbolizada pelo piano Fender Rhodes na carreira do sujeito que fez pelo jazz mais ou menos o que Pablo Picasso, pelas artes visuais. O principal atrativo do documentário: "Chame de Qualquer Coisa", a tal música executada na Ilha de Wight e "executada", aqui, pode ter sentido duplo.
Parte da Grã-Bretanha, a ilha serviu de palco para um evento musical que, em número de pessoas, equivaleu a dois Woodstocks. Entre as atrações, The Who, Jethro Tull, Supertramp e Jimi Hendrix. É provável que o 600.000.º sujeito do público, aquele lá no fim da multidão, não ouviu coisa alguma do que se fazia no palco. A verdade é que poucos pareciam se importar com a música a cantora Joni Mitchell teve de chamar a atenção de parte do público que, descontrolado, brigava e jogava coisas uns nos outros, impedindo a meia dúzia interessada de assistir ao show.
O documentário se desenrola sobre entrevistas e cenas de arquivo do próprio trompetista. Todos os músicos que acompanharam Miles até a ilha deram depoimentos. Outros, como Herbie Hancock, fizeram parte de formações anteriores, mas se dispuseram a falar sobre a experiência de tocar ao lado de um músico de meias palavras que sabia exatamente o que fazer para tirar de cada um aquilo que queria.
Uma das coisas mais engraçadas de qualquer produção que aborde Miles Davis é que as pessoas, sempre que contam algum episódio, fazem questão de imitar a voz rouca do trompetista culpa de cirurgia de garganta que acabou mal.
Quando, enfim, Miles entra em cena, parecendo entediado, às 17 horas do dia 29 de agosto de 1970 um ano depois de ter lançado Bitches Brew, o álbum de "jazz" mais vendido da História no qual o show se inspira , ocorre uma espécie de transe entre os músicos. O crítico Stanley Crouch, para quem Miles "se vendeu", descreveu a experiência como "o som de um martelo que maceta pregos em minha mão". Outros, como Carlos Santana, o consideraram visionário. O resultado não é jazz nem rock. É Miles Davis. GGGG
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