Difícil pensar em dois sujeitos de tipos mais opostos. O primeiro é jovem. Deve ter menos de 25 anos. Usa cabelo e barba crescidos e desgrenhados, e roupas maltrapilhas. Algum tipo profundo de melancolia, ou algo que a valha, o atirou num misto de mudez e inamovibilidade que o tornam páreo duro às pedras da praça Tiradentes.
Em meu caminho, passo por ele duas ou três vezes ao dia, na esquina da Rua do Rosário com a Cruz Machado. Ali, embaixo da marquise da antiga sede da Prosdócimo, ele vive parado como uma geladeira – o olho azul vazio, perdido no nada.
Quer dizer, houve um dia em que pensei notar um esboço de sorriso, como se ele tivesse enfim entendido a piada de nossas vidas. Impressão minha (ou a malícia devia estar dentro da minha cabeça). O certo é que ele segue sempre lá, sem fazer ruído, enquanto os dias correm como vira-latas atrás do cio canalha do tempo.
O outro sujeito, por sua vez, não consegue ficar parado. Suas rugas e calva – com crespos chumaços na lateral à moda do pateta Larry – parecem ter mais de sessenta anos. Seus sapatos de couro, o costume cinza escuro e a blusa de lã em tricô de agulha parecem em bom estado.
Diferente de seu antagonista taciturno o homem está sempre indo ou vindo: desce a Doutor Muricy, escapa da chuva pelas marquise da travessa Nestor de Castro, cruza a Praça Generoso Marques. E ao contrário de seu imóvel rival não para de falar nenhum segundo.
A voz rouca lembra um Paulo César Pereio que ainda fuma cigarros sem filtro a explicar, o tempo todo, um assunto muito grave para si mesmo. Eu que já o segui (involuntariamente) pelas ruas e já me sentei (de propósito) ao seu lado na Biblioteca Pública sei, no entanto, que ao mexer os lábios ele fala um idioma estranho no qual é o único iniciado.
Dá para imaginar um passado “civil” para o homem que fala sozinho. E até algum laço de família que o assista hoje em sua eloquência singular. Quanto ao outro, parece mais um tipo de faquir solitário do era do crack.
Ocorre que na última terça-feira a providencia os colocou frente a frente, ou ainda, um sobre o outro. (Nas esquinas das grandes cidades, um louco sempre pode esbarrar num santo).
Foi assim: algo distraiu (um rabo de saia?) o falante homem de paletó que olhou para trás enquanto o bovino escoamento da multidão na encruzilhada fez com que ele topasse com as canelas inertes do monge mendigo. E por um momento eterno os dois se embolaram num judô inacreditável.
Com a sorte do “popular” da famosa crônica do Veríssimo pude antever o choque. E fui percorrido como que por milagre, pela narrativa acima. Não deixei, contudo, de notar que por um segundo, ou menos, os olhos de ambos se despiram de seus personagens neste enredo de loucura protetora do agito das metrópoles. E fui eu que, súbito, passei a encarnar o meu: o do sujeito que tem certeza que viu um santo tropeçar no outro.
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