A timidez é, talvez, o grande ponto em comum entre Baden Powell e Tom Zé, os novos contemplados com DVDs da série Ensaio. Por isso mesmo, o mestre dos afrosambas e a figura mais à esquerda do Tropicalismo se mostram extremamente à vontade com o formato do programa, cuja essência é o intimismo.
No ar há mais de 30 anos, pela TV Cultura, a atração musical prioriza o músico e a música. Não há cenário, luzes mirabolantes ou efeitos, e mesmo a voz do entrevistador é omitida. Com DVDs lançados pela gravadora Trama desde o ano passado, a coleção com registros do Ensaio já brindou o público com shows e bate-papos de Elis Regina, Gal Costa e Tim Maia. Para breve, estão previstos títulos de Tom Jobim, Paulinho da Viola e, um dos mais esperados, Pixinguinha.
Como é de praxe na série, as entrevistas enfocam dados biográficos dos artistas. Em seu programa, gravado em 1990, Baden Powell (1937 2000) fala sobre a influência do pai (músico e entusiasta do escotismo, paixão que o levou a batizar o filho com o nome do fundador do movimento), a ligação com o morro da Mangueira, a relação com os cultos de origem africana e, é claro, os primórdios da bossa nova. O violonista lembra da "turma cobra", "da pesada", que articulou os passos iniciais do gênero musical: Johnny Alf, João Donato, João Gilberto, Tom Jobim, Luiz Eça, etc. Vinicius de Moraes, seu maior parceiro, é tema de um bloco inteiro de conversa, pontuado por histórias dignas da lenda pessoal do poetinha.
Dono de um canto delicado, frágil, Baden deixa a firmeza para as cordas de seu violão literalmente lascado de tanto uso. No repertório da apresentação-solo, um desfile de clássicos, marcado pelas composições escritas com Vinicius. Os melhores momentos ficam por conta de "Samba em Prelúdio", "O Astronauta", "Samba da Benção" e um poderoso pout-porri com "Consolação", "Canto de Ossanha", "Berimbau" e "Cantos de Capoeira". Destaque também para duas parcerias com Paulo Cesar Pinheiro, "Voltei" e "Lapinha".
Já o programa de Tom Zé chama a atenção pelo momento particular em que o baiano vivia em 1991, ano da gravação. O "primo pobre" de Caetano, Gil e companhia amargava o esquecimento total no Brasil, mas colhia os primeiros louros de sua carreira internacional. "Descoberto" em um sebo de São Paulo pelo músico americano David Byrne (que, sem querer, comprou um de seus LPs entre discos de samba tradicionais e intrigou-se com o experimentalismo contido ali), o artista finalmente atingia o status de cult. Mais tarde, no fim da década, passaria a ser reverenciado também por aqui.
O envolvimento com Byrne é um dos assuntos da entrevista, que ainda passa pela infância de Tom Zé na pequena Itararé, a mudança para Salvador (com uma interessante comparação entre a cultura oral do interior e a educação "ocidental, pífia e linear" da capital) e os primeiros shows com os futuros Doces Bárbaros. "O Tropicalismo era uma vontade de conhecer o mundo", resume o músico. Há, ainda, uma referência ao conceito de "plagiocombinação", que o baiano apresentaria ao mundo anos depois, no álbum Com Defeito de Fabricação (1998).
Sozinho ou ao lado da banda que o acompanha até hoje, Tom Zé interpreta dez temas, entre eles "Cademar" (com letra do poeta concretista Augusto de Campos), "Hein?", "Um Oh! E um Ah!", "Parque Industrial", "São São Paulo" e "Ogodô Ano 2000". De quebra, para ilustrar algumas partes de seu depoimento, toca trechos de canções como "Profissão Ladrão", "Insensatez" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e "O Cravo Brigou com a Rosa" (para ele, uma letra sobre defloramento).
Entre a espiritualidade de Baden Powell e o cerebralismo de Tom Zé não há dúvida: melhor ficar com os dois.
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