• Carregando...

Não seria exagero dizer que, sem figuras como Ana Maria Bahiana, você talvez não estivesse lendo este texto agora. Com quase 30 anos de carreira, ela é uma das pioneiras brasileiras do jornalismo cultural de cunho pop. Seu currículo inclui passagens pelos principais veículos do país, cinco livros, uma longa temporada nos Estados Unidos e até colaborações para a seminal versão tupiniquim da revista Rolling Stone (a primeira, editada por aqui entre 1972 e 1973). Neste exato momento, Ana Maria prepara-se para lançar, ao lado do marido, o também jornalista José Emílio Roundeau, a produção do longa-metragem de ficção 1972.

A década de 70 é uma de suas especialidades. Não só por ter vivido intensamente o período. Mais do que representar a memória viva daqueles anos, a experiente jornalista sabe analisá-los com profundidade. E é isso que diferencia seu Almanaque Anos 70 (Ediouro, 416 págs., R$ 49,90) de outros trabalhos semelhantes. Se o Almanaque Anos 80, publicado com grande sucesso em 2004, limitava-se a reproduzir ícones, o livro de Ana Maria vai além e propõe uma reflexão interessante sobre a herança setentista. Reflexão induzida pela própria organização do material, dividido basicamente em duas grandes partes – cada uma compreendendo cinco anos. No mais, as centenas imagens de arquivo falam por si mesmas.

Tempos plurais, os 70 foram marcados por roqueiros, punks, surfistas, cabeludos, doidões, playboys, rastafaris, dançarinos de discoteca, etc. Mas, por mais que os clichês saltassem aos olhos, Ana Maria percebeu que estava lidando com "duas décadas em uma" (daí a organização em um par de blocos). A primeira metade, segundo a autora, seria o rescaldo dos anos 60, simbolizado por polarizações no Brasil e no mundo – caretas e desbundados, sistema e alternativa, superfície e subterrâneo. Essa tensão se dissolveria aos poucos a partir de 1975, com a abertura política gradual, a anistia e a adoção de um estilo de vida mais baseado na diversão (vide o boom hedonista da disco music). Até as drogas eram diferentes: sai a maconha, cogumelos e afins, entra a cocaína.

Análises à parte, a jornalista faz questão de deixar claro que Almanaque Anos 70 "não é um mapa, é uma confeitaria". Ou seja, é impossível não se deliciar com um repertório tão colorido, vibrante e, analisando agora, exagerado. Cada metade do livro é organizada em oito pequenos capítulos: Ícones, Estilo, Música, Verbo, Artes & Manhas, Curtição, Esportes e Mídia. E cabe de tudo nessa divisão – da participação da Seleção Brasileira nas copas às marcas de sorvete mais populares, dos jingles publicitários inesquecíveis ao fenômeno das pornochanchadas nos cinemas. É tanto material reunido e misturado que, como indica Ana Maria, pode-se ler a partir de qualquer pedaço, em qualquer ordem.

No início de cada capítulo, ou pontuando as páginas, há frases e letras de música emblemáticas do período. Com destaque especial para as proferidas pelos cabeças do regime militar, hilárias e assustadoras ao mesmo tempo. "O emprego desses meios de comunicação, inclusive peças de teatro, obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional" (do Decreto-lei de 1970 que instituiu a censura prévia de espetáculos teatrais). "Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranqüilizante após um dia de trabalho" (do general e ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, em 1973). "É para abrir mesmo. Quem quiser que não abra, eu prendo e arrebento" (do também general e ex-presidente João Baptista Figueiredo, em 1979).

Nada, no entanto, é mais simbólico do que o Manifesto Hippie, publicado no Pasquim de 8 de janeiro de 1970 e assinado pelo jornalista e guru contracultural Luiz Carlos Maciel. Eis um trecho: "Seguinte: o futuro já começou. Não se pode julgá-lo com as leis do passado. A nova cultura é o começo da nova civilização. E a nova sensibilidade é o começo da nova cultura (...). Você curtiu essa? Há muito ainda que curtir". Podes crer, amizade.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]