Em uma cena do clássico Em Busca do Tempo Perdido, o escritor Marcel Proust (1871 – 1922) utiliza uma madeleine, tipo de bolo francês, para excitar as lembranças de seu personagem. Haruki Murakami faz coisa semelhante, mas com uma música dos Beatles. Durante um vôo, Toru Watanabe ouve "Norwegian Wood" e, de uma hora para outra, é levado a lembrar de vários episódios de seus 37 anos de vida. A canção faz parte do álbum Rubber Soul (1965) e fala de sujeito que tinha uma garota. Lançado originalmente em 1987, Norwegian Wood (Tradução de Jefferson José Teixeira. Objetiva, 356 págs., R$ 49,90) segue percurso semelhante: fala de relações amorosas e acaba de ser lançado no Brasil. E ele não está só.

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Dance Dance Dance (Tradução de Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae. Estação Liberdade, 504 págs., R$ 58) também chega às livrarias e reforça o que, antes, parecia só um palpite. O mercado brasileiro resolveu dar atenção a Murakami – celebridade mundial desde os anos 90. Talvez por um acaso daqueles que fazem a vida valer a pena, os dois lançamentos – ambos traduzidos direto do japonês – representam exatamente as duas características marcantes da obra do autor de 56 anos. Ele escreve histórias de amor, como Norwegian Wood, e outras de mistério, carregadas de realismo fantástico. Exemplo dessa segunda modalidade é Dance Dance Dance, em que o narrador procura por Kiki, paixão antiga que desapareceu do hotel onde viviam. Nesse enredo, Franz Kafka parece ser uma das influências. O autor checo de O Processo e A Metamorfose aparece também no livro mais recente de Murakami, Kafka on the Shore. Embora independente, Dance... faz parte de uma trilogia que inclui Caçando Carneiros (disponível no Brasil) e Hard-Boiled Wonderland and the End of the World (inédito no país). Os três são ligados por um mesmo narrador.

Filho de professores de literatura japonesa, Murakami fazia de tudo para contrariar seus pais. Inclusive ler autores ocidentais. Seus heróis eram russos, como Chekhov, ou franceses, como Flaubert. A primeira epifania aconteceu quando os americanos – Truman Capote, F. Scott Fitzgerald, J. D. Salinger e, seu ídolo, Raymond Carver – caíram na sua mão.

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Aliás, sua vida é repleta de momentos místicos. Ainda criança, experimentou mais um ao ouvir, no rádio, música ocidental (Beatles e Beach Boys). Outro, aos 14 anos, diante de um show de Art Blakey and the Jazz Messengers – sua paixão por jazz o levaria a abrir um bar dedicado ao gênero em Tóquio, entre 1974 e 1981. No dia 1.º de abril de 1978, aos 29 anos, assistia a um jogo de beisebol quando decidiu, sem mais nem menos, que seria escritor. Comprou caneta e papel na volta para casa e produziu como nunca durante seis meses. O resultado foi seu romance de estréia, Hear the Wind Sing (1979). Com ele, venceu concursos de revistas especializadas – o apoio que faltava para fechar seu bar, o Peter Cat, e se dedicar somente à literatura. Essa é a versão dele para a história.

"Se é arte ou literatura que está procurando, você faria bem em ler os gregos. Para a arte verdadeira, é preciso ter escravidão. Era assim com os gregos antigos: enquanto os escravos trabalhavam nas plantações, preparavam as refeições e remavam os barcos, os cidadãos se regozijavam sob o sol do Mediterrâneo, arrebatados por composições poéticas ou envolvidos em sua matemática. É assim que funciona com a arte. Meros humanos que reviram suas geladeiras às três da manhã só podem produzir textos que tenham a ver com o que eles fazem. E nisso eu me incluo", diz o narrador de Murakami em Hear the Wind Sing.

Fã do saxofonista Stan Getz (1927 – 1991), um de seus passatempos é traduzir. De preferência, os autores essenciais para sua formação. Enquanto amadurecia como escritor, decidiu deixar o Japão porque queria independência – do cânone, da sociedade e das tradições japonesas. Em 1987, ele e sua mulher, Yoko, com quem é casado há 34 anos, viajaram para Roma. Na cidade italiana, produziu Norwegian Wood, um fenômeno editorial, vendendo perto de quatro milhões de cópias. Por abordar a transição da adolescência para a vida adulta, com tudo de bom e de ruim que isso implica, falando de amor, música e sexo, o livro deu voz a uma geração que, no fim dos anos 80, estava na casa dos 20 e tantos anos. Na cultura japonesa, é como um misto de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, e Pé na Estrada, de Jack Kerouac. A vida de Murakami jamais seria a mesma.

A influência de Norwegian Wood chegou a alavancar as vendas de Rubber Soul, dos Beatles, rendeu coletâneas das músicas citadas no livro, convites para o autor participar de propagandas (recusados) e ofertas para adaptações cinematográficas (recusadas). Quando finalizou seu trabalho seguinte, Dance Dance Dance (1988), decidiu retornar para casa. Agüentou a badalação em torno de si somente alguns meses. Voltou para a Europa e, dois anos depois, fez nova tentativa de viver no Japão. Outra vez, não durou um ano e se mudou para os EUA. Em 1995, quando o terremoto em Kobe matou mais de cinco mil pessoas e um atentado no metrô de Tóquio levou outras 11, ele sentiu que poderia fazer algo por seu país. Partiu para sua terra natal e, de lá, não saiu mais. Escreveu um livro de não-ficção (Underground, de 2001) e outro de contos (After the Quake, de 2002) movido pelos eventos daquele ano.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, o escritor Kazuo Ishiguro (Vestígios do Dia) diz que a obsessão de seu amigo, Murakami, é a efemeridade da vida. "Ele identifica isso enquanto seus personagens são relativamente novos: são pessoas que ainda estão entrando na idade madura, mas já parecem capazes de reconhecer que um período de beleza e energia passou sem que pudessem perceber como isso aconteceu." Perceber que a vida é passageira é experimentar um tipo de perda. Se fosse preciso descrever a literatura de Murakami em uma palavra, "perda" seria ela.

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