Cortadora de cana trabalha no município de São Pedro do Ivaí| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

"O trabalho tende ao repouso, e não o repouso ao trabalho."

Aristóteles, filósofo.

"Com o suor de teu rosto comerás o pão até que voltes para a terra, de onde foste tomado; pois és pó, e ao pó hás de tornar."

Trecho da Bíblia, parte do Antigo Testamento.

"Se quisermos determinar o valor do trabalho segundo a quantidade de tempo, aplicação, boa ou má vontade, coação, inventividade ou preguiça, honestidade ou dissimulação que nele é empregada, então o valor jamais pode ser justo; pois teríamos de colocar a pessoa inteira na balança, o que é impossível."

Friedrich Nietzsche (1844-1900), no livro Humano, Demasiado Humano II (Companhia das Letras).

"Buscar trabalho pelo salário – nisso quase todos os homens dos civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, ao quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras."

Nietzsche, no livro A Gaia Ciência (Companhia das Letras).

"O trabalho é apenas um meio, não um fim. Porém é o mais importante dos meios para a sociedade e um dos mais formadores para o indivíduo. Engana-se quem o adora por si mesmo, mas ainda mais quem o esquece ou despreza."

André Comte-Sponville, no livro A Vida Humana (WMF Martins Fontes).

"O trabalho, mesmo agradável, o que raramente é, tende sempre para alguma utilidade exterior (um produto, um progresso, um salário...) que justifique o tempo e a energia que lhe dedicamos."

André Comte-Sponville.

"Trabalhar por trabalhar é loucura ou prisão."

André Comte-Sponville.

"A alma que não tem objetivo estabelecido perde-se: pois, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum."

Michel de Montaigne (1533-1592), em seus Ensaios.

"Na realidade, é menos a própria atividade do trabalho que proporciona satisfação do que os fatores ditos ‘extrínsecos’: segurança, relações sociais, salários, vantagens sociais, melhoria do nível de vida." Gilles Lipovetsky, no livro A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade de Hiperconsumo (Companhia das Letras).

"O operário só tem o sentimento de ser ele mesmo fora do trabalho e, no trabalho, sente-se fora de si. Sente-se em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não se sente em casa."

Karl Marx (1818-1883), filósofo.

"O operário coloca sua vida no objeto. Mas então esta não lhe pertence mais, pertence ao objeto."

Marx.

"Não fazer nada é a principal e a mais forte paixão do homem após a de se conservar. Caso se observasse bem, ver-se-ia que, mesmo entre nós, é para alcançar o repouso que todos trabalham, que é ainda a preguiça que nos torna laboriosos."

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

"Os moralistas que louvam o trabalho me fazem pensar nos palermas que foram ludibriados numa barraca de feira e que tentam de qualquer maneira fazer os outros entrarem ali."

Jules Renard (1864-1910), filósofo.

"O medo do tédio é a única desculpa do trabalho."

Renard.

"O desejo de atribuir significado ao nosso trabalho é uma parte inata e inflexível de nossa composição."

Alain de Botton, no livro Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho.

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Mário de Andrade tinha 25 anos quando escreveu um texto de três páginas que publicou no jornal paulistano A Gazeta no dia 3 de setembro de 1918. O título: "A Divina Pre­­guiça". É um texto pouco citado e, desconfio, pouco lido. O que é curioso, já que a exclamação de Macunaíma – "Ai, que preguiça!" – é repetida como um bordão consagrado sempre que se fala a respeito do herói sem ne­­nhum caráter. O romance Macu­naíma foi publicado em 1928, portanto Mário teve pelo menos dez anos para virar e revirar em sua mente as ideias que lançou no artigo em que sintetiza uma crítica ao trabalho, um elogio do ócio e uma divinização da preguiça. Mas não se trata de qualquer preguiça, nem de qualquer ócio ou de qualquer trabalho.

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A data em que o artigo foi publicado é importante, pois na Europa a Primeira Guerra Mun­­dial ainda rugia – terminaria dentro de três meses. O horizonte a partir do qual Mário enfoca a questão são os descaminhos que levaram à guerra e os princípios segundo os quais se pensa a civilização. Por isso o artigo inicia lembrando a oposição que habitualmente é feita entre momentos "de progresso, de estacionamento e de eras em que a civilização volta atrás", equívoco que Mário combate. "Na passagem das civilizações" – diz ele – "como na própria vida, tudo é marchar".

Um dos sintomas desses descaminhos, anteriores "ao famigerado agosto de 1914", ele vai encontrar, num corte cirúrgico, nas práticas cientificistas da época. Ou, nas suas palavras: "a propensão que tinham os cientistas de explicar as faltas e os vícios dos homens por meio de doenças e de atavismo". Entre tais faltas e vícios destaca-se a preguiça, espécie de avesso de um mundo em progresso e movimento constante, com o acúmulo de riquezas e de novas tecnologias de dominação do homem e do mundo. O projeto capitalista precisava de ação e produção – motivo pelo qual a preguiça deveria ser acusada de vício, senão de crime. E os "cientistas" – mais precisamente os psiquiatras – se prestaram de imediato a esse papel.

Mário, "folheando as eruditas páginas de Austregésilo sobre a ‘Preguiça patológica’", ri dos cientistas. Lembra que a loucura, ao longo da história, teria sido para alguns um dom divino e para outros um pecado mortal; agora, estaria acuada, "reduzida a um morbo de nova espécie!"

A preguiça deixa de ter a nobreza vinda dos deuses e o peso trágico derivado das misérias humanas. Perdeu a grandeza. Já não seria possível agradecer seu usufruto aos deuses ou penitenciar-se nos confessionários. "Sem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença!" Os preguiçosos eram doentes sem grandeza e nada se esperava deles ou da preguiça. Toda "mandranice" se reduzia ao "mesmo morbo".

É interessante como, no início do século, Mário desenvolve uma análise que só será pensada plenamente após a década de 1960, quando se tomará consciência dos mecanismos através dos quais o que ameaça ou contradiz o projeto capitalista deverá ser apontado como entrave à disciplina dos corpos. Isso só se ouvirá com Marcuse, Foucault etc. Há antecedentes, é claro. Um deles, O Direito à Preguiça, publicado em 1848, de Paul Lafargue, genro gaiato de Karl Marx. E vale lembrar que, em 1882, Machado de Assis, no notável O Alienista, havia apontado o exercício de poder que parece umbilicalmente colado ao discurso científico. A fabricação do louco, em Machado de Assis, passa pelo exercício de poder do psiquiatra positivista.

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Mário e Machado estão, nesse caso, décadas antes de seu tempo.

Assim, reduzida a uma doença, a preguiça deve ser calada. E curada, talvez em estações de águas. Depois dessa terapia, ironiza Mário: "a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!".

Mário ressalta que em diferentes momentos da história a preguiça foi vista de forma diversa. Na Grécia, por exemplo, e em Roma. O ócio era aí respeitado, pois se sabia que era a partir dele que os poetas e filósofos criavam literatura e pensamento. O conhecimento, seja na geometria ou na engenharia, precisava não apenas de mão de obra e de muito suor, mas também de quem pudesse resolver questões aparentemente desvinculadas de qualquer aplicação prática. Como se sabe, os gregos tinham grande desprezo pelos trabalhos manuais, o que lhes permitia uma sociedade escravocrata. E sabiam que, ao se tornarem livres do trabalho servil, os homens se tornaram capazes de criar artes plásticas ou literárias, ciência e conhecimento. Aristóteles e Platão assinalam com clareza o papel do ócio na criação artística e filosófica. Mário pensa da mesma forma ao dizer que a arte "nasceu porventura dum bocejo sublime" e o "belo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio".

Com o cristianismo – que, contrariamente ao escravismo grego e romano, postula a igualdade teórica entre todos os homens, filhos e imagem de um mesmo Deus – a preguiça vai sofrer um deslocamento. Foi transformada em pecado. "Mas, diz Mário, já não é a mesma preguiça". Ela é um vício quando se torna enfraquecimento, tibieza, o abandono das "lutas e das porfias". Essa "inércia lânguida" é a porta aberta aos pecados. É isso que o cristianismo combate, mas devemos lembrar que, no isolamento dos mosteiros, monges se dedicam a longos momentos de reflexão, produzindo textos religiosos, filosóficos, copiando e ilustrando textos, reinventando a pintura, o conhecimento, até alcançar os patamares a que chegou a filosofia e a pintura no século 13.

A necessidade de se sentir livre do trabalho servil é essencial, sabem os medievais, para a geração do conhecimento, tanto que esse irá renascer quando o fundamentalismo dos primeiros séculos se abrandar. O Renas­­cimento recuperará o ideal clássico grego ao final desse longo processo.

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Mário, diante dos desastres da guerra – movida por ambição, ganância e desejo de poder – se recusa a abrir mão da preguiça. "Mil vezes não!", exclama ele. Justamente nesse momento em que se anseia pelo seu fim, poderá ocorrer a transformação civilizatória "para que o idealismo floresça e as ilusões fecundem". Seria o "Sésamo, abre-te" do qual ele fala.

Portanto, nada de dar ouvidos aos "psiquiatras" que "querem trazer à preguiça mais essa qualificação de doentia, redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares! Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença!"

A preguiça tem um papel fundamental a desempenhar, portanto. A divina preguiça, criadora, bocejo sublime, será a parteira dos novos tempos.

No entanto, se Mário escrevesse, não em 27 de agosto de 1918, mas nessa morna quinta-feira de 19 de novembro de 2009, penso que ele teria um problema a mais.

Hoje circula muita desconversa a respeito do assunto. O chamado mundo corporativo – que se apropriou de algumas categorias com as quais a filosofia pensou a questão do trabalho e do ócio – vulgariza um discurso que, desinteressado do verdadeiro ócio e da divina preguiça, busca transformar trabalhadores em criaturas maleáveis, acomodadas às felicidades do consumo, ao projeto de ganhar mais, ter prestígio e sucesso. Enfim, ócio incorporado à produção.

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Trata-se de uma perversão da divina preguiça. Imagino que Mário de Andrade reclamaria. É preciso estar alerta: o ócio e a preguiça têm um valor absoluto, caso contrário se perdem como instrumento de manipulação nas mãos de quem manda.

A divina preguiça injeta, nas ações humanas, um antídoto contra toda servidão ao trabalho. É o espaço aberto à criatividade, à liberdade, capaz de dar aos homens a sensação de plenitude que só o reencontro de si mesmo pode proporcionar. Sem lucros e sem utilidades oportunistas – apenas pela realização do que há de melhor no ser humano. Pouco importa que seja exercida no domínio da técnica, da ciência, das artes ou do conhecimento de si mesmo, aquilo que os gregos chamavam de autonomia.

Eis onde nos levam as intuições geniais que Mário de Andrade lançou em seu artigo de 1918.

Agora, se alguém ainda dirige à preguiça ou ao ócio um olhar de desconfiança, lembro mais um paradoxo: não é fácil encontrarmos quem tenha trabalhado mais do que Mário de Andrade. Ou quem trabalhou mais do que Picasso ou Paster.

Mas é um trabalho de outra ordem – erotizado, como dizia Marcuse, ou, "no convívio da divina Preguiça", como escreveu Mário.

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* Roberto Gomes é colunista da Gazeta do Povo e autor de vários livros, entre eles, o romance Júlia (Editora Leitura).