Cena do documentário Cinema de Guerrilha, de Evaldo Mocarzel| Foto: Divulgação

Recife - Quando a câmera digital chega às mãos de quem vive na periferia, abre-se o visor para que um grupo muito mirado pelo cinema brasileiro, em seus matizes mais dramáticos, se expresse por si mesmo. Cinema de Guerrilha, novo documentário de Evaldo Mocarzel apresentado na Mostra Competitiva do 14.º Cine PE Festival do Audiovisual, tenta capturar essa movimentação, que talvez permaneça ainda invisível para os que não a vivem de perto: o longa-metragem se volta para uma roda de estudantes de cinema moradores da periferia de São Paulo, que atua na região realizando oficinas de audiovisual e mostras de vídeo para outros jovens.

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Esses garotos rejeitam prontamente o interesse quase fetichista da classe média brasileira e do cinema nacional pela "realidade" da periferia, que a enfoca pelo viés violento e miserável: uma moda que apelidaram de "pop pobre". Esse cotidiano de submundo e ameaças sob arma de fogo não é o retratado nem por Mocarzel nem pelos jovens realizadores a quem ele acompanha com sua câmera. Ainda que um ato violento se imponha em um momento do documentário dando a medida do imponderável do gênero e recontextualizando as circunstâncias com que lidam diariamente.

Mocarzel se interpõe ao que o cineasta define como "uma visão estereotipada dos movimentos sociais, que são considerados invasores pela mídia". "A gente tem sempre essa intermediação midiática e nunca vai diretamente à fonte", comenta, em tom de crítica.

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Seu filme potencialmente guarda pequenas surpresas para a classe média e seu conhecimento restrito sobre a cultura periférica.

Por exemplo, ao ouvir-se da boca dos cineastas da região referências a Tarkóvski e a filmes como Edukators, O Cão Andaluz ou Os Sonhadores. Nas oficinas que eles ministram, garotas e garotos criam roteiros sobre terrorismo poético. Confabulam atentados contra janelas de quem vive no centro da cidade, quebrando seus vidros com pedras embrulhadas em poemas, para dar um recado de insubordinação intelectualizada. O que querem, segundo eles mesmos dizem, é provar a própria sensibilidade, criatividade e intelectualismo a estratos sociais que os ignoram para além dos moldes do tal pop pobre.

Cinema de Guerrilha não deixa de ser um filme de classe média sobre a periferia, portanto um olhar estrangeiro. Como argumenta Luciano Oliveira, um dos estudantes de Cinema de quem se ouve as idéias enquanto a câmera fecha em seu rosto no trajeto de uma van (recurso longamente explorado que dá mais peso ao discurso do que à imagem), é ilusão que o documentarista ou cineasta de ficção possa se misturar na realidade da "perifa" e se imiscuir a tal ponto daquele modo de vida que passe a fazer parte do cenário. Câmera desligada, o diretor volta ao seu quarto confortável de classe média.

É nesse sentido que o mesmo estudante de Cinema chama a atenção para o fato de que o grupo é atuante e produtivo, mas não "aparece" até que um outro, vindo de um cenário não marginalizado, como no caso Mocarzel, lhes confira visibilidade mostrando-os em seus filmes. "Espero que meu curta esteja na seleção do Cine PE ano que vem", diz Oliveira.

* A repórter viajou a convite do Cine PE.

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