São Paulo - Em Palermo Shooting, mais recente longa-metragem do cineasta alemão Wim Wenders, Finn, reconhecido fotógrafo que atravessa profunda crise existencial, recebe um convite quase irrecusável. Ter algumas de suas obras, quase todas imagens urbanas, afixadas em painéis gigantes espalhados em regiões movimentadas de São Paulo.
Minutos mais tarde, seu assessor lhe mostra a maquete de um grande museu paulista, idêntico ao prédio modernista do Masp, cuja fachada também deverá servir de espaço expositivo para as fotos do artista, protagonista do filme.
Quando Wenders escreveu o roteiro de Palermo Shooting, em parceria com Norman Ohler, ele não poderia imaginar que, alguns poucos anos mais tarde, seria o homenageado especial da 32ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, evento no qual seus filmes sempre participaram desde a terceira edição, quando O Amigo Americano (1977) foi exibido.
Wenders está há três dias em São Paulo, onde participou de um debate anteontem à noite, logo após a projeção de seu novo longa no Cinesesc, que ficou lotado para ouvi-lo. Há anos, o diretor da Mostra, o jornalista Leon Cakoff, tentava trazê-lo, mas apenas agora deu certo.
"Leon foi incansável. Agora eu não tinha desculpa, sabia o quanto minha visita estava atrasada", conta o autor dos hoje clássicos Paris, Texas (1984), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Asas do Desejo (1987), prêmio de direção na mostra francesa e obra que, para muitos, antecipou a queda do Muro de Berlim. Ambos foram exibidos pela Mostra no passado.
Crítica
Quando foi apresentado na mostra competitiva de Cannes, em maio passado, Palermo Shooting não agradou a crítica internacional, que não lhe poupou comentários negativos. Sobre essa fria recepção da imprensa, Wenders garante não ter ficado abalado ou decepcionado e tenta explicar o que ocorreu: "Não fiquei desapontado, porque o público de lá amou o filme". Parece papo de pai defendendo a cria. Mas não é.
Em uma versão 14 minutos mais curta do que a edição exibida na Riviera Francesa, Palermo Shooting está longe de ser um filme ruim. Pelo contrário: é um dos mais intrigantes da Mostra neste ano.
"Os críticos se dividiram e eu entendo um pouco o porquê dessa reação. O tema da morte é um grande tabu no cinema. Muitos deles viram o filme como uma ofensa pessoal, por isso ficaram furiosos."
Finn, personagem central de Palermo Shooting, é um homem rico, bonito, bem-sucedido e cercado de atenções o tempo todo não à toa, Wenders, que sempre teve forte ligação com o mundo da música, escalou o roqueiro alemão Campino para o papel. No passado, trabalhou com o australiano Nick Cave (Asas do Desejo), a banda U2 (Até o Fim do Mundo) e a cantora portuguesa Teresa Salgueiro, do grupo Madredeus (O Céu de Lisboa).
Todo esse sucesso profissional, no entanto, garante a Finn felicidade. Em determinado momento do filme, ele diz: "Estou me sentindo perdido". Essa insatisfação constante o leva a Palermo, capital da região italiana da Sicília, onde vai fotografar a modelo e atriz Milla Jovovich, fazendo papel dela mesma, grávida de oito meses. Encerrado o trabalho, Finn decide ficar.
Na cidade siciliana, o fotógrafo começa a ser acometido pela estranha visão de um sujeito fantasmagórico, vestido de capote branco, sempre munido de um arco e flecha.
Pior: o tal arqueiro insiste em atingi-lo com suas setas, visíveis apenas para Finn, que não sabe estar acordado ou delirando. Real é o encontro dele com Flávia (a belíssima e talentosa Giovanna Mezzogiorno, de O Último Beijo), restauradora de obras de arte que, ironicamente, trabalha há anos na recuperação de um afresco do século 15.
A pintura, de autoria desconhecida, retrata a morte como um esqueleto montado a cavalo e munido de flechas que atingem o Papa, o arcebispo de Palermo e o monarca das Duas Sicílias, reino que existia antes da unificação da Itália.
Como quase toda a obra de Wim Wenders, Palermo Shooting tem um forte componente auto-reflexivo. Afinal, a palavra shooting, presente no título do longa, pode significar tanto o ato de atirar, disparar (flechas, armas de fogo) tirar fotos (como faz Finn) ou rodar filmes (ofício de Wenders).
Numa das cenas mais emblemáticas de Palermo Shooting, Finn, delirante ou não, trava um diálogo com o arqueiro que o persegue, vivido por Dennis Hopper, que em O Amigo Americano é o psicopata Ripley, célebre personagem criado pela escritora Patricia Highsmith. Na conversa, a figura, que seria uma encarnação da morte, faz uma defesa do filme 35 mm, lamentando a tecnologia digital, que permitiria a banalização do ato de manipular a imagem.
Sobre o diálogo, Wenders tenta explicar o que pretende dizer, afirmando que, nos últimos 150 anos, "ficamos tão acostumados culturalmente à idéia de que tirar uma foto é um ato irreversível, que acontece apenas uma vez, e é um ato no tempo, um ato de verdade. Todas estas idéias, de algo acontecendo apenas uma vez, estão indo pelo ralo com a revolução digital".
Para o cineasta, a fotografia como "a morte em ação", como diziam alguns filósofos, foi uma das bases do século 20 e isso desapareceu. "Então, não se estranhe que o sr. Morte reclame, estamos bagunçando a condição de seu trabalho. É estranhamente engraçado", completa Wenders, tentando escapar da pergunta que não que calar: se essa é uma reflexão do personagem ou se pensamentos seus foram parar em Palermo Shooting.
Projetos
Atualmente, Wenders trabalha em dois novos projetos. O primeiro será um documentário sobre a trupe da bailarina alemã Pina Bausch, que ele está acompanhando há 30 anos.
O diretor conta estar escrevendo um novo roteiro de ficção, que tem o título provisório de Miso Soup (sopa de missô) e será filmado em Tóquio, uma cidade especial para o realizador. Na capital do Japão, fez dois documentários, Tokyo-Ga e Identidade de Nós Mesmos.
O editor do Caderno G viajou a convite da organização da Mostra.
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