Frei Betto vai causar barulho no próximo ano. O frade, que vem gerando polêmica ao longo dos anos devido à sua estreita ligação com a esquerda e com os movimentos sociais, promete para março um livro sobre o atual governo federal. Ele será o primeiro integrante do governo Lula a publicar uma obra sobre a experiência do PT no poder. A Mosca Azul, já pronto e entregue à Editora Rocco, fala sobre os quase dois anos em que Frei Betto foi assessor especial de Lula para programas sociais e faz uma reflexão sobre o poder.

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Para Frei Betto, o atual governo está longe de ser decepcionante. Merece nota dez em vários quesitos, como a política externa, a concepção de programas sociais e a ligação com os movimentos populares. Mas errou ao preferir governar com o Congresso, ao invés de fazê-lo com seus aliados históricos, os movimentos sociais. E erra na política econômica. Em entrevista à Gazeta do Povo, o frade, escritor e político comenta a sua carreira e o próximo livro. Confira os principais trechos a seguir.

Gazeta do Povo – O senhor é um homem preocupado com o destino da humanidade. Por que escrever ficção? Os livros mudam o mundo?Frei Betto – Eu não acho que livro muda o mundo. Os livros mudam as pessoas e as pessoas mudam o mundo. A frase não é minha, mas eu não me lembro quem disse isso. Mas os livros mudam as pessoas. Existem pessoas que têm um impacto muito forte com os livros. Kafka dizia que o livro devia servir como um machado para quebrar o mar de gelo que tem dentro da gente.

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Mas o senhor continua escrevendo livros de nao-ficção.Eu continuo escrevendo livros de ensaios. Porque eu sou fundamentalmente também um memorialista. Eu escrevi muitos livros que têm a ver com a minha experiência de vida. Eu nunca fiz análise. E os meus amigos, como o Hélio Pellegrino, que já morreu, dizem que é porque eu literalizo as minhas experiências. Foi o que eu fiz a partir da minha experiência no governo em 2003 e 2004, nesse livro que vai sair agora em março, A Mosca Azul.

A Mosca Azul é um livro de memórias?É um livro feito a partir de memórias mesmo antes de 2003, de todo o processo que levou à construção desse governo, à eleição do Lula. E, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o poder, revisitando os clássicos da política: Platão, Aristóteles, passando por Maquiavel, Hobbes, Hannah Arendt, Norberto Bobbio. E tem referências fortes ao atual governo. Faço uma reflexão sobre os impasses desse atual governo.

E quais são as suas conclusões?Ah, eu não quero adiantar. Eu digo que é um ensaio sobre o poder e que eu mostro avanços e impasses desse governo. Mas é uma questão mais abrangente sobre a política do que ficar analisando especificamente o governo Lula. O governo atual entra como pano de fundo para uma reflexão sobre esquerda, sobre o que significa esquerda no poder, sobre o que significa a construção da democracia hoje, limitações deste modelo de democracia que nós temos hoje – e que são muitas, até porque o povo delega, mas não participa.

O senhor está decepcionado com o governo Lula?Eu não sou decepcionado de jeito nenhum. Eu considero que o governo Lula é nota dez em política externa, é nota dez nas concepções das suas políticas sociais. Embora a reforma agrária esteja excessivamente atrasada. Nota dez no microcrédito. Nota dez no diálogo com os movimentos populares – a não-criminalização, o respeito à autonomia desses movimentos, inclusive quando pressionam o governo. A minha discordância maior é com a política econômica. Essa política econômica para mim é o avesso de tudo o que o PT sempre pregou, sempre falou. É uma política de o Brasil todo trabalhando para pagar os juros da dívida externa. É por isso que as políticas sociais não deslancham tal como foram concebidas.

Nenhuma idéia que o senhor queira adiantar?Eu diria que o livro mostra que o grande equívoco do governo Lula foi ter sido gerado pelos movimentos sociais e uma vez chegando ao governo federal ter preferido governar com o Congresso do que com os movimentos sociais. O governo despiu a camiseta dos movimentos populares e vestiu a camisa do Congresso. E está pagando caro por isso. Porque ele era o único governo na História republicana que tinha respaldo dos movimentos populares. E isso foi desconsiderado.

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O que o senhor acha da política cultural do atual governo?Eu acho o trabalho que o ministro Gilberto Gil está fazendo excelente, embora com uma dotação orçamentária vergonhosa para as necessidades e o tamanho do país. Eu estive na Galícia, que tem três milhões de habitantes, e o orçamento da cultura lá é maior do que o orçamento do governo brasileiro.

O senhor acredita que houve uma tentativa de dirigismo cultural por parte do PT?Eu acho que o governo deveria interferir muito mais do que interfere. Afinal, ele é eleito pela população para promover o bem comum. Eu lamento, por exemplo, que o governo não interfira mais nas televisões, que são concessões públicas, para evitar uma série de porcarias, uma série de programas que são danosos aos valores humanos, são danosos aos direitos humanos. E, no entanto, como o que está mandando até agora são as regras do mercado, então eles são veiculados com toda a impunidade. Eu acho que o governo tinha a obrigação de ter um direcionamento ético naquilo que é concessão pública. Alguém dirá: "Mas isso é censura". Não. Censura faz o diretor da televisão, o diretor da rádio, quando diz "Fulano pode ser entrevistado, João Pedro Stédile, do MST, não". Isso é censura.

O senhor ainda acredita na esquerda?Não só acredito como faço questão de me posicionar dentro dela. Eu acho que o mundo não tem saída fora de uma democracia que equacione a promoção da liberdade com a partilha dos bens na sua dimesão politica com a dimensão econômica. Essa democracia que nós temos hoje é um embuste, porque na verdade as pessoas pobres não são livres do ponto de vista econômico, porque não podem nem adquirir os bens indispensáveis e não são livres do ponto de vista político não tem como expressar. Não são ouvidas. Elas são virtualmente livres, dotadas de direitos virtuais. Eu não espero mais participar da colheita, mas eu quero morrer semente de um mundo diferente desse que está aqui. E eu considero que nós temos de lutar pelo aperfeiçoamento da democracia. E esse aperfeiçoamento da democracia eu continuo chamando de socialismo.