Entre miúdos e bananas

Julio Bernardo é filho da feira. Crítico de gastronomia implacável, não tem papas na língua na hora de avaliar algum estabelecimento ou chef, seja ele um ícone ou não. Com a mesma linguagem solta e clara, Bernardo relata em Dias de Feira (Companhia das Letras), por meio de crônicas, sua infância e adolescência passadas entre barracas de miúdos, frutas e pastéis junto com os pais, feirantes em São Paulo nas décadas de 1970 e 1980.

Há mais ou menos dois anos, o editor do livro, Leandro Sarmatz, leu no blog do autor (botecodojb.blogspot.com.br) uma história sobre os tempos de Bernardo na feira livre, e perguntou a ele se toparia reunir as histórias.

Convite aceito, o crítico teve de puxar os detalhes e causos unicamente da memória. "O processo foi doloroso, sem fotos, nem anotações. Apenas um resgate de memória. Se demorasse mais um pouco, certamente não lembraria tanto. Assim como esqueci de colocar bastante coisa no livro", contou Bernardo em entrevista por e-mail à Gazeta do Povo de São Paulo, onde mora. A conversa, aliás, teve de ser obrigatoriamente por escrito, já que ele não usa telefone. "Não preciso dele [do telefone], pra nada. Além do que, esse exército zumbi, que fica de boca aberta, de frente pro seu smartphone, me irrita um bocado."

As histórias reunidas em Dias de Feira são surpreendentes: passa pelas familiares (de quando seu Israel, pai de Bernardo, que tinha uma barraca de miúdos, foi assaltado pelo irmão de um ex-funcionário, que acabou descoberto), conta os bastidores da feira (como funcionam os carregamentos, os lugares e os bons horários de compra), e também os afetivos (diz Bernardo que casais feirantes preferem, por vezes, namorar antes da labuta no caminhão do que depois da jornada cansativa em casa).

As crônicas não ficam apenas no plano divertido: em dois textos diferentes, o escritor relata a morte do pai e da mãe (Israel e Nice), além da separação dos dois. Uma vida regada a drogas e álcool também é comum entre os comerciantes – Bernardo pontua o assunto em vários textos. O hábito, por vezes, é usado como forma de aguentar o trabalho pesado, que inclui madrugadas em claro, organização e muita paciência para atender a clientela. "O álcool alivia, sem dúvida. E a maior parte das pessoas não têm a menor noção do quanto é pesado o trabalho".

Funcionamento

Apesar de os relatos das memórias serem de décadas passadas, o autor acredita que a dinâmica da feira livre, patrimônio social e cultural da rua, permanece. "Acho que não mudou tanto, assim. A feira é resistente, milenar...", crê. Só não é otimista em relação às mudanças pelas quais o pequeno comércio, sobretudo o de rua, vem passando.

No último texto do livro, o panorama de Bernardo não é animador. "Acho que o comércio pequeno, em geral, vem sendo engolido pelos grandes hipermercados, onde é possível comprar desde uma bandeja de legumes, até um televisor. E ainda se tem maior facilidade pra estacionar seu automóvel", diz o autor.

Gastronomia e afetação

No boteco do jb, o blog do autor, Bernardo não esconde seu descontentamento com a vaidade pela qual a comida e a cozinha passam, que inclui a glamourização da profissão de chef e a proliferação de "foodies coxinhas". "É uma afetação absolutamente lamentável. Quem conhece a rotina de uma cozinha sabe do ambiente militar predominante, sem o menor glamour". Entretanto, o autor considera importante o assunto comida ser cada vez mais comentado e discutido. "Quanto mais se falar sobre gastronomia, quanto mais informação as pessoas tiverem, maior é a possibilidade de transformarmos boa comida numa ação cotidiana."