Opinião
A batalha pelo direito à rua
Vanessa Fogaça Prateano, jornalista, consultora da Comissão de Estudos de Violência de Gênero da OAB/PR e mestranda em Sociologia Estudos de Gênero pela UFPR, cujo tema de pesquisa é o assédio verbal e sexual vivido pelas mulheres no espaço público
Discorrer sobre a luta das mulheres por mais igualdade e liberdade significa, obrigatoriamente, questionar o que se entende por público e por privado no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Se um dos maiores desafios de feministas, gestores públicos e estudiosos de gênero é fazer com que a violência doméstica seja entendida como um problema de Estado e de direitos humanos, igualmente difícil é trabalhar a noção de que a rua também é espaço da mulher e de que seu corpo lhe pertence e continua sendo um espaço privado.
O trabalho é árduo. É no espaço doméstico que ocorrem quase 70% das agressões contra mulheres no país, onde ainda se entende que tal "comportamento" é assunto de casal, nada tão grave que mereça a interferência de terceiros. Ao mesmo tempo, quando uma mulher é atacada no espaço público, com palavras e gestos ofensivos, abordagens insistentes e até passadas de mão e "encoxadas", também se conclui que este é um tema menor, e qualquer iniciativa que vise a conscientizar sobre e a coibir tais atitudes é vista como "exagero", "radicalismo" ou "a morte do flerte e da conquista".
Os dados, porém, são preocupantes. De acordo com pesquisa da Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, 37% das brasileiras já foram atacadas em vias públicas 29% delas por estranhos. No entanto, ainda não há campanha que busque chamar a atenção para o fato, visto como natural e imutável - algo como "mulheres são assediadas na rua, sempre foi assim e sempre será. Àquelas que não desejam passar por tal situação, recomenda-se que fiquem em casa".
O fato é que quando homens se dirigem a mulheres sem receberem consentimento para tanto, quando as tocam sem permissão, gritam-lhes palavras obscenas, mesmo com testemunhas ao redor, e quando a sociedade se recusa a tratar tais atos como violações graves, um recado muito claro é passado a essas mulheres: a de que elas não pertencem ao espaço público. E de que, se quiserem ficar em segurança, é melhor que retornem ao lar e aos afazeres domésticos onde não serão atacadas por estranhos, pelo menos. Percebe-se aqui o quanto a violência de gênero é naturalizada. Em casa, pouco se pode fazer contra a agressão de cônjuges e parentes. Na rua, contra a cometida por estranhos, tampouco.
Embora seja um tema ainda pouco debatido, o assédio na rua começa a gerar reações. Com a ajuda da internet, pesquisas e relatos têm mostrado que este é um problema cotidiano vivido por mulheres de qualquer cidade do mundo, e que grande parte já deixou de ir a algum lugar, passar por determinada rua ou de usar certos tipos de roupa com medo do assédio. Com isso, têm tolhidos seus direitos mais básicos, como o de ir e vir e de usufruir de espaços, serviços e equipamentos públicos. Tornam-se menos cidadãs, já que isso reflete, segundo o relatório Safe Cities Global Initiative, da ONU Mulheres, na sua educação, lazer, vida profissional e até na participação política.
Nos últimos anos, várias organizações e iniciativas foram criadas para chamar atenção para o problema. Nos EUA, há a Stop Street Harassment, que por meio de pesquisas mostrou que 99% das americanas já foram assediadas em público. Na França, o curta-metragem Maioria Oprimida, que inverte os papéis de homens e mulheres na sociedade, também apontou para o medo vivido nas ruas pelas francesas.
Na Bélgica, porém, é onde o tema gerou uma resposta do poder público. Nesta semana, o senado do país aprovou uma lei que define a intimidação sexual nas ruas como ofensa criminal, primeiramente condenando o agressor a multa que varia entre 50 e 1 mil euros, e com pena de prisão de até um ano em caso de reincidência. Desde 2011, as cantadas já eram passíveis de multa na capital Bruxelas, após uma jovem filmar com uma câmera escondida os assédios que vivia na rua, e o documentário chocar o país.
Punição
A criminalização de tais condutas é discutível, uma vez que a prisão não resolve o problema estrutural do machismo e da discriminação. Tampouco eficazes são as medidas que visam a segregar as mulheres em vagões e ônibus exclusivos, com o objetivo de evitar os assédios no transporte coletivo proposta que chegou a ser defendida pelo vereador de Curitiba Rogério Campos (PSC), mas que, felizmente, não teve êxito. Tal medida, que parece visar ao bem-estar das mulheres, é contraproducente, pela mensagem que passa à sociedade a respeito do assédio.
A principal é de que, para combater a discriminação, é preciso segregar, algo extremamente paradoxal e perigoso. Paralelamente, coloca sobre as mulheres a responsabilidade de se defenderem, ao invés de exigir dos homens que as respeitem. Afinal, por que muitos se sentem tão livres para assediar? Não seria porque a eles é passada a mensagem de que não podem controlar seus instintos, e de que cabe à mulher se preservar? E quando a mulher não puder pegar o ônibus exclusivo e optar pelo convencional, isso será visto como um sinal verde para o assédio? Uma vez que ele não ocorre só nos ônibus, teremos de segregar estações-tubo, ruas, praças e talvez a cidade?
Diante disso, o que fazer? Ser contra espaços exclusivos ou qualificar como ineficaz a repressão a esse comportamento não significa agir contra os próprios direitos ou de maneira contraditória. O que o movimento feminista e as mulheres como um todo exigem são campanhas maciças e constantes de esclarecimentos, que mostrem que estão incomodadas e não veem isso como elogio, tal como acredita o senso comum.
Ao mesmo tempo, é preciso lutar pela educação de gênero nas escolas, visando à construção de novas relações entre os gêneros, marcadas pela igualdade e não por estereótipos, naturalizações e divisões que são a origem de discriminações, de comportamentos ofensivos e de crimes de ódio, não só feminicídios, mas também os de natureza homofóbica e transfóbica. Sem uma verdadeira mudança de mentalidade sobre os papéis que (não) cabem a cada um dos gêneros, que passe pela educação, não haverá lei, decreto ou segregação que dê conta de tanta violência.
Direitos
Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O nome é uma homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes. Baleada pelo marido, lutou vinte anos para ver o agressor preso
Violência
A Lei lista cinco formas:
Física atitudes que ofendam a integridade física ou a saúde.
Psicológica dano emocional, diminuição da autoestima, controle, perseguição, insulto, manipulação, limitação do direito de ir e vir.
Sexual relação sexual ou práticas forçadas.
Patrimonial Retenção ou destruição de bens e valores.
Moral calúnia, difamação ou injúria.
Punição
A legislação propõe três aspectos principais:
Criação de juizados de violência doméstica e familiar com equipes multidisciplinares para atendimento nas áreas criminal e cível.
Proibição de pena pecuniária Veda a aplicação de penas de multa e cesta básica (artigo 17).
Prisão preventiva quando há descumprimento da medida protetiva.
Medidas Protetivas
São as atitudes que o juiz pode aplicar para afastar o agressor:
Afastamento do lar.
Limite máximo de distância da mulher, familiares e testemunhas.
Proibição da presença em locais frequentados pela vítima.
Restrição de contato com a vítima.
Restrição de visita aos filhos.
Fim de semana
É o período em que são mortas mais mulheres. 36% dos casos ocorrem aos fins de semana. Os domingos concentram 19% das mortes.
"Campeão"
O Espírito Santo é o estado brasileiro com a maior taxa de feminicídios no Brasil: 11,24 a cada 100 mil mulheres. O Paraná é o 13º entre os 27 estados, com 6,49.
13,5 milhões de brasileiras já sofreram algum tipo de agressão de um homem.
Há pouco menos de um mês, o caso da estudante Paola Natália Cardoso, morta a tiros no meio da rua no bairro Alto da XV pelo namorado, o policial civil Napoleão Seki Júnior (que tentou se matar e morreu no hospital no começo desse mês) chocou a cidade e repercutiu em todo o país. Naquele 24 de abril, entretanto, Paola foi um dos rostos de uma triste estatística: hoje, 15 mulheres em média são mortas no Brasil todos os dias por causas violentas ou uma a cada uma hora e meia.
Na última quinta-feira, assistimos à condenação do ex-cirurgião plástico Farah Jorge Farah, que ficará 16 anos na prisão por matar e esquartejar a paciente e amante Maria do Carmo Alves, em 2003. Os exemplos são inúmeros e perpassam décadas: em 1976, a socialite Ângela Diniz foi assassinada pelo companheiro Doca Street numa casa de praia em Búzios (RJ), crime amplamente divulgado pela imprensa.
No ano passado, também em Curitiba, a dona de uma panificadora no bairro Mercês, Bernadete Dulla Zella, de 43 anos, foi sequestrada e morta pelo ex-marido, que a ameaçava constantemente após a separação. Mesmo destino de Gravelina Terezinha Lemes, de São Carlos (SP), em 1997: com 14 pontos na cabeça após uma agressão do companheiro, ela recorreu à delegacia. Foi orientada a não voltar para casa, mas não tinha para onde ir. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado com golpes de marreta. A filha, de um ano e meio, ainda sugava os seios da mãe.
Todos os exemplos acima mostram a expressão máxima da violência contra a mulher, e que a afirmativa "o machismo mata" é verdadeira e palpável. O estudo Feminicídios: a Violência Fatal contra a Mulher, divulgado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que, de 2001 a 2011, ocorreram 50 mil mortes de mulheres por conflito de gênero no Brasil, ou seja: pelo fato de serem mulheres. Os crimes, diz o levantamento, são perpetrados por homens, principalmente companheiros e ex-companheiros, e decorrem de situações de abuso no domicílio, ameaças ou intimidação.
A Organização das Nações Unidas (ONU) classifica a violência contra a mulher no mundo como uma pandemia, e dados do órgão mostram que metade de todas as mulheres assassinadas no mundo são mortas pelo parceiro ou ex-parceiro.
Por outro lado, o assunto é mais debatido, pesquisado e divulgado. Além da Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, o fortalecimento do movimento feminista e as pesquisas de diferentes instituições colocaram o assunto na pauta da imprensa e da sociedade nos últimos anos. Levantamentos também mostram que há uma ampla aprovação de medidas de proteção. A pesquisa Percepções dos Homens sobre a Violência contra a Mulher, do Instituto Avon/Data Popular (2013), aponta que 92% dos entrevistados são favoráveis à Lei.
No mesmo estudo, a contradição: questionados sobre como a mulher deve reagir quando sofre violência do marido, o levantamento apontou que 36% dos homens disseram que "antes de qualquer atitude", a mulher deve primeiro "conversar com o parceiro". O que escancara o problema central apontado pelos especialistas entrevistados pelo Caderno G Ideias: enquanto não se mudar a mentalidade de que essa situação não pode permanecer no âmbito privado, as estatísticas continuarão as mesmas.
Mentalidade
É o velho "em briga de marido e mulher, não se mete a colher". A polêmica pesquisa do Ipea divulgada esse ano, que trocou o porcentual na pergunta de que a mulher teria responsabilidade em caso de estupro, mostra, por exemplo, que 82% dos entrevistados concordam com esse clichê. "Então, a pessoa pode viver numa vizinhança em que há violência doméstica em quase todas as casas, e ainda achar que aquele é um problema individual e, como tal, deve ser resolvido apenas em família", pontua a professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará e autora do blog Escreva Lola Escreva, Lola Aronovich.
Em Curitiba, um levantamento encomendado pela Secretaria Municipal Extraordinária da Mulher (ativa há um ano), realizada pelo Instituto Bonilha e divulgada em março, mostra que os curitibanos mais discordam do que concordam com essa máxima: 37% discordam totalmente da afirmativa, enquanto 29% concordam.
Quebrar essa lógica é a determinação da secretária municipal da mulher, Roseli Isidoro, que abraçou como causa principal o enfrentamento à violência, pautada em reuniões com diversos movimentos sociais. "Foi uma exigência da sociedade", conta. Além de medidas efetivas, como a Patrulha Maria da Penha, lançada em março (que vem acompanhando mulheres em situação de risco, em conjunto com a Guarda Municipal), Roseli aposta no debate. "Tem muitos homens que rejeitam a violência, mas não sabem que xingar uma mulher, fazer um comentário jocoso, é tão grave quanto bater", frisa.
Cultura
Para a socióloga e doutora em Antropologia Social Marília Gomes de Carvalho, professora e pesquisadora do grupo de Gênero e Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a violência de gênero acontece em um universo social onde predomina a concepção de que o homem é dono do corpo da mulher. "Ele acha que há propriedade sobre o jeito que ela pensa, se veste, anda, se comporta, como se relaciona. E a partir dessa visão, ele se sente no direito de fazer desse corpo o que bem entende."
O levantamento do Instituto Avon prova que essa mentalidade ainda é maioria. Na pesquisa, 69% dos homens entrevistados acham que a mulher não deve sair sem o marido, e 46% que elas não devem usar roupas justas ou decotadas. Ainda: 88% consideram "inaceitável" que a mulher não mantenha a casa em ordem.
Esse pensamento que divide o que cabe ao homem ou à mulher gera uma tolerância social da violência, frisa a presidente da Comissão de Estudos à Violência de Gênero da seccional Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sandra Lia Leda
Bazzo Barwinski. "Isso reforça e reproduz estereótipos de gênero. Quando você estabelece que a mulher deve agir de forma diferente, a sociedade permanecerá intolerante às mudanças."
Luta
A secretária Roseli Isidoro acredita que é necessário discutir o assunto amplamente, e em várias instituições, inclusive na Igreja, que, segundo ela, também "não pode se furtar desse debate". "Quantas vezes durante a homilia vamos nos deparar com mulheres que não têm coragem de confessar ao padre que é vítima de violência? É preciso que as igrejas pactuem conosco, para desmistificar a ideia de que será um pecado se ela denunciar ou se separar do marido violento. Se a gente não pactuar um compromisso do poder público, sociedade e igrejas, vamos perder essa batalha."
A "evolução" da agressão
Começa de maneira discreta, sem deixar marcas físicas um xingamento, uma desqualificação em relação à mulher. Depois, a agressão verbal vem acompanhada de empurrões, até evoluir para agressões físicas. Geralmente, essas são as fases que antecedem o feminicídio.
"A literatura nos diz que a agressão começa de forma sutil. Existem casos isolados do homem que mata a mulher repentinamente, mas são raros", explica a psicóloga e professora do mestrado em Piscologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Maria da Graça Saldanha Padilha.
A mulher agredida também tem como característica ser mais isolada socialmente, já que agressor, aos poucos, vai a afastando da vida social, dos amigos, da família e da Igreja, ou seja, de todos os locais onde ela poderia buscar socorro. "O medo das agressões e do futuro, principalmente quando a mulher tem filhos, são alguns fatores que a seguram numa relação agressiva", salienta Maria.
Coordenadora das Delegacias da Mulher do Paraná, a delegada Eunice Vieira Bonome, que trabalha há 20 anos com casos de violência contra a mulher, percebe que as agredidas têm uma grande dependência emocional do parceiro. Por isso, muitas não conseguem sair da situação. "Não é uma questão de ser um amor doente. Mas ela se sente responsável em zelar pela família."
"Monstro"
Quando um caso de feminicídio ocorre, o homem que mata geralmente é visto como um desequilibrado, que cometeu o ato "fora da razão". "Os homens que matam não são monstros psicopatas, mas aprenderam que só se pode resolver conflitos por meio da violência física. São homens que aprenderam que suas mulheres são sua propriedade, e que é melhor vê-las mortas do que com outro homem. Esses homens têm a noção mais atrasada acerca da masculinidade", salienta a professora de Literatura da Universidade Federal do Ceará, e autora do blog Escreva Lola Escreva, Lola Aronovich.
Lei
A análise de crimes de feminicídio e suas resoluções ainda partem do ponto de vista masculino, acredita a presidente da Comissão de Estudos à Violência de Gênero da seccional Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski. "O exemplo é o crime passional. Ainda se acredita e se fala no crime passional, algo que não se concebe mais numa sociedade civilizada. Justificar quem mata por amor, que amor é esse? Um slogan feminista da década de 1960 já dizia: quem ama, não mata. E continuamos dizendo na legislação que sim."
De acordo com Sandra, a legislação prevê, ainda, redução de pena quando entende que o homem agiu em violenta emoção, privado da racionalidade. "Não pode ser concebível, é construção de uma cultura jurídica machista. E isso é muito sério, pois o Direito acaba norteando todo o entendimento da sociedade."