"Volto à morte como ela, delicada, se volta para mim. Todo dia, disse e repito, tem alguém conhecido que nos (dou uma chegada ao Brasil pelas asas da Panair) deixou. Leio o pouco que entendemos da difícil arte do obituário, na qual os britânicos ainda detêm medalha de ouro, e, na companhia fiel de meu enfisema, constatamos. Só isso. Constatamos. Não há mais motivo para verter lágrimas."
Trecho da crônica Morrer por Cremação É Joia, publicada em dezembro de 2011, no site da BBC.
Frasista genial, pensador anárquico, o jornalista Ivan Lessa, que morreu na última sexta-feira em sua casa, em Londres, deixou para a posteridade epígrafes que marcaram o jornalismo brasileiro. Entre os ditos mais famosos estão: "A cada 15 anos os brasileiros esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos" e "O último a sair apague a luz", referindo-se ao Brasil, em resposta ao que os militares apregoavam durante a ditadura (o "Ame-o ou deixe-o").
Filho da cronista Elsie Lessa e do escritor Orígenes Lessa, Ivan Pinheiro Themudo Lessa nasceu em 9 de maio de 1935, em São Paulo, mas foi criado no Rio de Janeiro. Ele era bisneto de Julio Cézar Ribeiro Vaughan, criador de jornais e autor do romance naturalista A Carne. Lessa também morou nos Estados Unidos, quando seu pai trabalhou para a Coordenação de Assuntos Interamericanos.
Lessa foi fundador e um dos principais colaboradores do jornal O Pasquim, ao lado de Ziraldo, Paulo Francis, Tarso de Castro e Millôr Fernandes. Com o cartunista e amigo Jaguar, Lessa criou o ratinho Sig, inspirado no psicanalista Sigmund Freud, que se tornou símbolo de O Pasquim.
Entre 1972 e 1981, Ivan Lessa era responsável por uma das melhores páginas do Pasquim, intitulada "Gip Gip Nheco Nheco". Era uma seção que reunia cartuns ilustrando frases lapidares de Lessa, um mosaico de desaforismos, talhadas por um fino humor e que resumiam disfarçadamente a crítica situação de então.
Segundo sua mulher, Elizabeth, com quem viveu por 39 anos, Lessa sofria de enfisema pulmonar, o que provocava graves problemas respiratórios. Ela disse que, ao chegar em casa na noite de sexta-feira, encontrou o jornalista morto no escritório. O jornalista morava em Londres desde 1978 e trabalhava na BBC Brasil, para a qual enviava três crônicas semanais. Um dia antes de morrer, o jornalista enviou sua última coluna, divulgada na manhã de sexta-feira, na qual listava frases ironizando a morte.
Quando passou a viver na capital inglesa, criou outra seção, "Diários de Londres", na qual relatava fatos cotidianos, comentava a política internacional e, principalmente, dava voz a um personagem inesquecível, Edélsio Tavares. Tratava-se de uma caricatura do brasileiro que, perdido no exterior, procura manter hábitos típicos, como falar alto, batucar na mesa e dar palpites sobre assuntos que não entende.
Também colaborou, enquanto vivia autoexilado em Londres, para diversos órgãos de imprensa nacional. Sua marca registrada eram textos "disfarçados de simplicidade", como gostava de dizer. Publicou os livros Garotos da Fuzarca, Ivan Vê o Mundo e O Luar e a Rainha, e participou do livro Eles Foram para Petrópolis, compilação da sua troca de correspondência por e-mail com o amigo e jornalista Mario Sergio Conti.
Sarcasmo e capricho
Amigos e colegas de profissão apontam o humor cáustico e a escrita esmerada como dois dos traços definidores da carreira de Ivan Lessa. "Foi uma das pessoas mais engraçadas, debochadas e inteligentes que já conheci. Ele era muito inventivo. Tinha uma maneira bastante peculiar de ver as coisas", disse o escritor e jornalista Sérgio Augusto, que conviveu com Lessa por seis anos na redação de O Pasquim.
O jornalista Carlos Leonam recordou o estilo sem papas na língua de Lessa. "Conheci o Ivan no início dos anos 1960, quando eu era diretor da [editora] Nova Fronteira, e ele trabalhava na função de tradutor. Lembro que lhe pedi para revisar uma tradução de Os Canhões de Navarone [de Alistair MacLean]. No dia seguinte, ele entrou no meu escritório e disse: Seu tradutor chamou yellow bastard [expressão equivalente a covarde] de bastardo amarelo. Não vou revisar essa porcaria."
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