A linhagem de Auden
O melhor tributo a um poeta morto é um poeta vivo.
A linhagem de Auden (de Emily Dickinson, de Eliot) deu imensos frutos no mundo e, não podia deixar de ser, nas ilhas Britânicas.
O mais interessante e mais radical deles, hoje, na minha modesta, bem pode ser Simon Armitage (nascido em 63). O autor do recente Tyranossaurus Rex versus the Corduroy Kid (Algo como T. Rex contra o Super Cotelê) é, em muitos sentidos, uma versão mais adequada à era pop de muitas das preocupações de Auden, sobre quem já inclusive dirigiu um documentário.
Cultura pop, referências quase folclóricas (um certo tom de conto de fadas), nele se juntam a um universo urbano radicalmente familiar, por vezes violento, normalmente cínico e divertido. Tudo isso numa poesia que, formalmente, tem a mesma tensão do melhor verso audeniano.
Até onde eu saiba ele não foi traduzido no Brasil, mas vale bem a pena, se você é membro da estranha comunidade que efetivamente celebra o centenário de um poeta.
No nosso hoje.
No nosso aqui.
Um certo tipo de perfeição. Eis o que ele procurava, e a poesia que inventou era fácil de se entender. Conhecia perfeitamente bem a loucura dos homens, e tinha um grande interesse por exércitos e esquadras. Quando ria, respeitáveis senadores não podiam conter o riso. E, quando chorava, criancinhas morriam pelas ruas.
Eis um poeta. Definido por um.
A poesia, como bem define o escritor Cristovão Tezza em seu Entre a Prosa e Poesia, tende precisamente a ser obra desse tirano que o primeiro parágrafo descreve. Extremamente poderoso precisamente por não dar ouvidos a outras necessidades e desejos que não os seus.
Manda o que mude na língua.
Manda o que minta no mundo.
Por isso mesmo, em tempos como o nosso, assim tão pouco afeitos a autoridades culturais muito convictas, os poetas têm, mais do que nunca, que explicar que serventia possam ter.
Eles, os fabricantes de inutensílios.
A história da crise da poesia, interna e externamente, cruza todo o século passado. E nela Wynstan Hugh (W. H.) Auden, autor do poema de que eu roubei o título e aquele primeiro parágrafo, teve um papel fundamental.
Tanto na crise quanto na sobrevivência.
Nascido há exatos cem anos, Auden chegou no mundo em boa hora. Para um poeta.
Quando sai a Terra Devastada, de T. S. Eliot, ele tem 15 anos de idade. A mais influenciável das fases da vida e, igualmente, a mais contestadora.
E Auden cresceu para ser o primeiro nome da geração de poetas modernos que sucedeu os fundadores. Cresceu para enfrentar (como se enfrenta até hoje) o fardo de conviver com um mundo em que a mesma definição da posição (social e discursiva) do poeta, vinha questionada por ninguém menos que os próprios poetas.
A poesia perdia a muleta da forma fixa e, depois do horror sem nome das guerras mundiais, se via com dúvidas.
A palavra vate um dia quis dizer profeta & poeta simplesmente porque as duas posições eram ocupadas pelo mesmo homem. Quando Theodor Adorno constata que não se pode mais escrever poesia depois de Auschwitz, ele está, parece, dando o golpe final nesse estatuto.
Depois do turbilhão modernista e do convulso início do século 20, uma nova poesia precisava achar seu lugar. E Auden foi fundamental nesse processo.
Seu verso mais típico é livre, mas tende a se aproximar das formas mais estáveis e, conforme seja mais adequado, aterrissa por vezes em um metro reconhecível.
Ele tendia a rimar. Mas seus esquemas de rimas podiam ser estranhos e, mais ainda, ele não fechava os olhos e os ouvidos à possibilidade da quase rima, da mera semelhança, se a palavra lhe parecesse a mais adequada.
Todas as possibilidades estavam em casa. Em paz.
João Cabral de Melo Neto disse em um poema que aparentemente a morte respeitava Auden.
Não só ela.
A poesia de Auden, ao contrário da de seu tirano, não era necessariamente fácil. Apesar de ele ter encontrado um tardio sucesso de best seller depois que seu poema Funeral Blues (que já havia sido musicado pelo grande Benjamin Britten) foi usado no filme Quatro Casamentos e Um Funeral, sua produção, especialmente no início, tende a ser algo hermética.
Auden é tradicionalmente considerado o primeiro poeta freudiano. Ele abraçou a psicanálise como meio de ver o mundo e, igualmente, como vocabulário para expressar o que via.
Igualmente, ele não se impedia de deixar nos primeiros poemas referências muito pontuais que, possivelmente, só ele mesmo poderia retraçar.
Mas uma vida vira voltas.
O mesmo homem que lutou a Guerra Civil Espanhola, converteu-se ao catolicismo (o que para um inglês é ainda mais aberrante que o fato de ele ter se naturalizado americano), teve de conviver o tempo todo com a homofobia mais ou menos velada de seu tempo, transitou entre quase todas as áreas da literatura.
Auden escreveu libretos de óperas, ensaios críticos (sua coleção A Mão do Artista é tremendamente respeitada), peças de teatro.
Sua poesia não podia ser unicolor.
Ela na verdade vai do lírico imediato (de Funeral Blues, por exemplo) ao hermético mais alegórico (em The Bonfires), das formas mais rígidas às mais lassas, dos tons mais elevados aos mais cotidianos. Ele era tido, na verdade, como um verdadeiro virtuose poético, capaz de escrever qualquer coisa, na voz de qualquer poeta (exceção feita aos papas do romantismo inglês, Keats e Shelley que ele algo freudianamente? dizia abominar, e a quem se referia como Kelley e Sheats).
Aquele treino como dramaturgo há de ter vindo a calhar.
Precisamente na contramão do que se vê com aquele mesmo T. S. Eliot (americano naturalizado inglês) que escrevia peças de teatro como um poeta, Auden pôde se mostrar capaz de escrever poesia como um dramaturgo, dando um passo gigante na consolidação da poesia apoética (na opinião eventual de um parnasiano ressuscitado) que o nosso século recebeu.
Muitas vozes, como no título do livro mais recente de Ferreira Gullar.
Em uma voz familiar e ao mesmo tempo estranha. Como no português-chinês do Macau de Paulo Henriques Britto.
Auden não morreu. Nem lá nem aqui. E nem podia. Até a morte o respeitava.
Sob o comando de Alcolumbre, Senado repetirá velhas práticas e testará a relação com o governo
Para comandar Senado, Alcolumbre terá PL e PT na vice-presidência. Acompanhe o Sem Rodeios
Lula encontrou um problema na economia
Barroso nega pedido da OAB para suspender regra do CNJ que compromete direito à ampla defesa
Deixe sua opinião