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A maioria das pessoas se frustra por não se encaixar num padrão estético imposto | Stefano Rellandini/Reuters
A maioria das pessoas se frustra por não se encaixar num padrão estético imposto| Foto: Stefano Rellandini/Reuters

Espelho da artificialidade

"Espelho, espelho meu. Existe alguém mais bela do que eu?" A madrasta de Branca de Neve sofreria infinitivamente mais com a questão nos dias de hoje. Além da beleza e do corpo perfeito, Branca possuía outro atributo valorizadíssimo atualmente: a juventude. O espelho não é mais um bom conselheiro. Ele nunca nos dará uma resposta suficientemente satisfatória, que reflita a imagem de beleza reproduzida pela tela gigante do cinema, pelos blogs de celebridades, pelas publicações especializadas em boa forma.

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Corpo: o maior capital do brasileiro

Acostumada ao púlpito das conferências, a antropóloga carioca Mirian Goldenberg quase teve de ir do consultório da dermatologista para o divã de um psicanalista. Aos 40 anos, estava em busca de um hidratante para o rosto. Saiu com um diagnóstico que lhe valeu quase um ano de crise existencial: a médica recomendou correção cirúrgica nas pálpebras, aplicação de botox e preenchimento de lábios.

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Supervalorizar o estético gera desumanização

Não há nada de patológico em buscar recursos externos – mais ou menos invasivos – para se sentir mais belo e atraente. O problema está em supervalorizar a juventude e a beleza e não aceitar que envelhecer faz parte do curso natural da vida. A psicoterapeuta de orientação junguiana Sâmara Jorge, colunista da Revista Crescer, aponta na entrevista a seguir como a busca por padrões estéticos inatingíveis pode nos atrapalhar como indivíduos.

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Ela tem cintura fina, seios fartos, a medida do quadril não ultrapassa a dos ombros nem pesa sobre as pernas longas e desenhadas. Faltam-lhe músculos, é certo, mas quando foi criada, há 50 anos, Barbie não estava assim tão habituada à rotina das academias. A boneca-mania de gerações e mais gerações de meninas decretou um padrão de beleza, acompanhado também de pele alva, nariz arrebitado, cabeleira loira, longa e farta. As abençoadas pela genética estariam destinadas a um final feliz. E as outras estariam fadadas a buscar este ideal de beleza. Seria esse o nascimento da era de plástico? Não fosse pelas bonecas perfeitas, seria pelas mãos da publicidade, pelas exigências do mercado ou pela busca da juventude eterna. E ficaria sempre claro – plasticamente falando – quem é o bonito e o feio da vez.

Mas se hoje os belos são os magros, altos e jovens, houve um tempo em que as carnes fartas tiveram seu auge. E a história da beleza foi se confundindo com a história do mundo e lançando padrões muito específicos em cada época. "Foi assim a partir do momento em que o homem passou a reconhecer a beleza existente no seu semelhante. E a desejá-la", comenta Fabrício Vaz Nunes, professor da Escola de Belas Artes, curador e crítico de arte. Desde então, os cabelos foram sendo esticados ou encaracolados ao sabor da moda, a pele recebeu camadas de talco para embranquecer, beliscões para ter ar de saúde e radiação solar para parecer ter sido curtida em algum paraíso tropical.

Os corpos perderam gordura, ganharam mililitros de silicone para preencher o que a natureza não proveu e aguardam os desmandos da próxima silhueta. Isso não é novidade para ninguém. Nem os padrões nem o impulso humano de querer ser belo.

Segundo Vaz Nunes, a velocidade das transformações se im­­pôs a partir do fim do século 19 e começo do século 20, quando o novo se torna melhor do que o que já passou e o consumo é estimulado de forma desenfreada.

A comunicação de massa torna a apresentação dos padrões mais rápida e eficiente, assim como sua aplicação e o desinteresse por eles. "Na lógica da industrialização, as coisas, o visual, as roupas estão programados para ficarem obsoletos. Quando se lança algum objeto de desejo, os primeiros a possuírem estão na moda, mas quando a grande massa passa a consumi-lo, ele perde o seu valor", diz Fabrício, citando o livro O Império do Efêmero, de Gilles Lipovetsky.

Para o crítico de arte, esse mesmo modelo de comunicação é o que hipersexualiza a figura feminina, sugere a transformação do corpo a qualquer preço. "Essa deformação é a versão pós-moderna do que era feito com os pés das chinesas, das mulheres girafa da Tailândia, da castração feminina. A autora norte-americana Naomi Wolf defende que o padrão de beleza atual é mais uma forma de do­­minação sobre o sexo feminino, que deixa a mulher fraca, em desvantagem perante o homem, sem o direito a um desenvolvimento saudável", analisa o professor, que aponta também para a opressão masculina – mais focada no desenvolvimento do corpo à base de exercícios físicos e anabolizantes. "Você acha que o botox é o que? É a experiência máxima da desqualificação humana, já que se perde a expressão. O sistema cria bobagens novas, padrões inatingíveis a serem seguidos."

Além de Gisele

Para a psicóloga clínica Mariana Garcez Pereira de Almeida, nem toda vaidade é cruel assim. "Vai­­dade é bom até quando se quer estar bem dentro da própria beleza, quando não se vira escravo dela, quando não se tenta melhorar alguma questão interna por intermédio de uma alteração externa", diz. Há quem use, na sua opinião, o corpo como válvula de escape para questões íntimas, mais difíceis de serem tratadas. "É claro que há também o apelo coletivo, que pede corpos belos, magros e jovens. Mas se a pessoa estiver de bem, com a autoestima elevada, isso não a afetará. Há muita beleza além da Gisele (Bünd­­chen). É preciso, no entanto, que as pessoas entendam como importantes outras potencialidades e valores que têm, como inteligência, talentos, capacidades."

Mariana explica que esse mesmo exercício precisa ser praticado em todas as idades. "Quando se tem uma criança que deixa de comer carboidratos para não ser uma adulta gorda, é preciso fazê-la pensar no que ela ganha e o que perde fazendo isso. Fica magra, mas sem saúde. É uma revisão de valores. Isso está na base da educação. Agora, quando não se tem tempo para cuidar dos filhos, quando se delega essa função à escola, à babá, não se pode esperar que a criança sozinha perceba que fez uma escolha errada. E uma criança perdida é um adolescente perdido e um adulto perdido."

Acostumado a detectar a beleza e descartar a feiúra ou a mesmice, o booker da agência Ford Models, Rudy Sarnovski, acredita que a ditadura da beleza está no limite da loucura. "Tem gente que não se im­­porta, mas a grande maioria se frustra por não se encaixar num pa­­drão. O que se esquece é que as mulheres e os homens das revistas não contam só com a natureza pa­­ra serem belos. As imagens são uma ilusão construída com muita ma­­quiagem, ângulos corretos e Photoshop", avalia ele. "Comparar-se a isso é muito cruel", diz. "E to­­mar um Prozac para resolver essa frustração ou por não ter feito a lipoescultura desejada não é receita de felicidade para ninguém", diz FabrícioVaz Nunes.

Forma x Conteúdo

Há uma conta segundo a qual, na política, a escolha de um candidato, depende 90% da sua imagem e apenas 10% do seu discurso. Ou seja, o símbolo – composto por imagem e tudo o que já se sabe sobre ele – fala mais alto do que as palavras. Esse é um princípio da democracia representacional. "O Lula perdeu duas eleições antes de se tornar presidente. Depois que deixou de lado o jeitão de Brutus do desenho animado, ficou simpático, com a barba e cabelos na medida certa e ternos bem cortados, ele foi eleito, aceito e até hoje conta com uma aprovação impressionante. Com o (Ba­­rack) Obama não foi diferente", comenta Vaz Nunes.

O publicitário Ricardo Schrap­­pe, diretor do Clube de Criação do Paraná, reforça esse discurso e concorda que a publicidade se vale muitas vezes desse artifício para mudar os rumos numa eleição ou até mesmo de uma marca. No entanto, não é possível recriar completamente uma imagem sem que se passe alguma verdade nisso.

"Por mais que a publicidade sobreviva de alguns clichês como a família feliz da propaganda de margarina, ela precisa ter uma relação com a realidade. As pessoas precisam entender a campanha ou o produto como interessantes e aplicáveis para ela. Por isso o sucesso de campanhas como a da Real Beleza da Dove ou da Beleza Não tem Idade da Natura. As pessoas gostam de ver que é possível ser bonito dentro da sua realidade", diz Schrappe.

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