Ainda criança, Clarice Lispector criava contos que as revistas da época se recusavam a publicar. Com sua pessoalidade radical, não conseguia se adequar às expectativas por escritos infantis no padrão "Era uma vez...". Adulta, a escritora imaginou que finalmente seria capaz, mas na folha em branco a primeira frase a desmentiu: "Era uma vez um pássaro, meu Deus!"
O espanto, a perplexidade. Clarice Lispector nunca se livrou deles, para o bem de seus leitores. Também nunca deixou de provocá-los. Mas esse mergulho profundo no "magma" como o chama a escritora Marina Colasanti desafia o leitor e rendeu a Clarice a fama de "hermética".
"Esse estado de perplexidade e de não inteligibilidade pela via racional não é explicação para um possível hermetismo", contesta a professora da USP Nádia Battela Gotlib autora de Clarice Fotobiografia (2008) e da biografia Clarice, uma Vida Que Se Conta (que será relançada em breve pela Edusp, em edição revista e ampliada). "O leitor tem de se desligar desse modo realista de ler e se deixar levar pelas sensações e emoções", sugere.
Nádia só consegue citar como "hermético" ou "complicado à primeira vista" o conto "O Ovo e a Galinha", o preferido da própria autora, que dizia também ser incapaz de desvendá-lo.
"Essa questão enigmática é a riqueza da obra de Clarice", destaca Marina. E envolve o leitor a tal ponto, que é difícil parar na superfície. "Não conheço médios leitores de Clarice: pessoas que gostam mais ou menos. Ou a amam ou não gostam. Ela tem um poder de penetração que gera relações muito intensas."
Também por isso continua a ser lida e reeditada, e respeitada como nunca. "Não creio que no tempo em que Clarice vivia se dissesse tão claramente que ela e Guimarães Rosa são os dois grandes escritores da modernidade brasileira, sozinhos num patamar só deles", diz Marina Colasanti, que foi sua editora no Jornal do Brasil, em que a autora de A Hora da Estrela publicava crônicas que viria a incorporar em seus livros.
Água Viva, por exemplo, é uma obra abstrata, como uma pintura, constituída de fragmentos que se uniram, variando de digressões sobre as espécies de flores às mais contundentes tentativas de apreender o "instante-já", a vida presente e pulsante e "o que está atrás do pensamento".
Se o caleidoscópio de temas de Clarice é diverso, como a vida, que ela tenta capturar pela essência, um fenômeno comum em seus escritos é a epifania. Exemplo está no conto "Amor". "Um homem cego mascava chicletes": basta a visão do banal para a protagonista Ana perceber subitamente a intensidade e o perigo da vida, que a arrepiava "como um frio".
"As personagens de Clarice são muito tranquilas na vida burguesa, bem arranjadas. Um encontro com o cego, um homem sem dentes, um cachorro, o búfalo, alguma coisa acontece que rompe com essa ordem e traz um momento de revelação. É como se saísse da planície e caísse em abismo no cerne da vida. Depois, em geral, recompõe-se. Traz do abismo uma modificação qualquer, porque ninguém aguenta ficar no abismo o tempo inteiro", diz Marina.
Abalo
Clarice estreou como estardalhaço em 1943, com Perto do Coração Selvagem. Todos os principais críticos da época se manifestaram, assombrados pelo ineditismo. Seus livros seguintes, O Lustre e A Cidade Sitiada não tiveram igual repercussão. A Maçã no Escuro veio com a novidade de um protagonista masculino em uma obra povoada de mulheres. A Paixão Segundo GH, em 1964, e A Hora da Estrela, o derradeiro romance de 1977, seriam os seus dois livros da maturidade a causar novos abalos.
Se não admite ter sido influenciada por nenhum escritor brasileiro que a precedeu, Clarice teve seguidores apaixonados. E desastrosos. "Não é uma escritora que abra caminho para outros escritores, é inimitavel", opina Marina. Sem copiá-la, quem teria chegado mais próximo dela, na opinião de Nádia, foi Caio Fernando Abreu.