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Erasmo Carlos já ordenou, viril, que o broto o acendesse com um beijo. Com a mesma sinceridade, sussurrou ternamente sua carência pela gatinha manhosa. Agora, aos 65 anos, lançando "Erasmo Carlos convida - Volume 2" (Indie), ele olha para trás e, de maneira simples, explica tudo:

- Sou filho do rock com a bossa nova - decreta, em sua casa, cercado de flâmulas do Vasco, miniaturas de Elvis, um braço falso pendurado no armário, um violão com cordas de náilon. Erasmo, enfim.

Tendo o masculino rock e a feminina bossa nova como matrizes, Erasmo construiu com Roberto Carlos uma obra que é capaz de atravessar gêneros, como mostra no novo CD - entre os convidados, estão Zeca Pagodinho, Skank, Los Hermanos, Cariocas e Chico Buarque.

- Pela minha relação com o rock, poderia passar minha carreira gravando em inglês. Mas nem sei inglês direito! Aprendi que não vou ser nunca um roqueirão. Isso era falso, uma imposição das pessoas. Andar de bota na praia não combina. Às vezes fico 20 dias de sunga em casa. Hoje eu sou como sou realmente.

Roqueiro tropical, romântico, brasileiro?

- Tudo isso. E não levo a sério esse negócio de artista, não faço disso uma redoma - diz, como um espelho invertido de Roberto. - As pessoas chegam em mim com a maior intimidade, dão tapa nas costas. Sou o Zeca Pagodinho do rock.

O CD teve oito meses de produção. Nesse tempo, começaram a nascer novas parcerias com Marcelo Camelo ("tenho uma música inédita dele para pôr letra") e com Marisa Monte e Carlinhos Brown.

Respondendo aos artistas

Nesta entrevista, ele responde a perguntas feitas pelos convidados do CD - apenas Los Hermanos, em recesso, não fez a sua. Entre brincadeiras e memórias, conta que gostaria de ter Cauby e João Gilberto no disco e transforma em reflexão a gaiata pergunta de Chico - nada mais que o verso inicial de "Olha" na interrogativa.

LULU SANTOS: Ficou a contento o projeto?

ERASMO CARLOS: Ficou além da minha expectativa. Entrou o que eu queria, a surpresa de ver o que o convidado faria na música. O Lulu tomou conta de "Coqueiro verde". Chegou lá, pegou a batera eletrônica, mandou, comandou: "Faz isso, espera quatro compassos, entra o sampler". Aí começou com as brincadeiras, eu fui atrás. O Zeca mudou a divisão da música ("Cama e mesa") completamente, fez outra maravilhosa. Milton cuidou de "Emoções" como se fosse dele. O Mú Carvalho (produtor do CD) indicou Vittor Santos para fazer os arranjos, Milton adorou. Soa estranho para quem está acostumado com a big band no estilo que o Roberto gravou. E essa é a grande qualidade do disco, dar nova cara às canções.

DJAVAN: Você é um grande roqueiro e um baladista de primeira. Como explica isso?

ERASMO: Eu vi o nascer da bossa nova e do rock‘n’roll. É como se fossem meu pai e minha mãe. Os dois chegaram juntos para mim, em 58, o ano em que conheci Roberto Carlos. Para mim é uma data fervente. É a idade em que as influências pegam você. Mas antes deles eu ouvia tudo que tocava no rádio: bolero, seresta, música clássica, big bands, guarânias... Domingo, o pessoal — eu morava numa vila — botava os rádios todos altos, 23 casas, todas com as mesas na porta, cada uma preparando suas comidas. Feijoada, rabada... Não tinha sushi nenhum não, a Tijuca era braba. Eu ouvia tudo ali, enquanto ficava jogando botão: Sílvio Caldas, Francisco Alves, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Mas quando surgiram rock e bossa nova, eles me escravizaram.

ZECA PAGODINHO: Qual o maior motivo de orgulho na sua carreira?

ERASMO: Pô, bicho, são tantos... Ser merecedor da honra de ter tantos colegas maravilhosos gravando comigo é um deles.

SIMONE: Vai haver um "Erasmo convida III"? Se houver, pode ter repeteco?

ERASMO: Se tiver, vou continuar com o mesmo critério. Não vai haver repeteco de convidados nem de músicas. Neste, teríamos 14 convidados. Os outros dois seriam Cauby Peixoto e João Gilberto. Mas não deu, por vários motivos.

ADRIANA CALCANHOTTO: Da música de hoje, qual você acha que te causaria o impacto que o rock te causou?

ERASMO: Nada me causaria aquele impacto. Aquilo foi o nascimento de tudo que está aí, que é decorrente tanto do rock como do samba. O rap eu vejo mais como letra que música. Eu gosto de cantar com melodia no fundo. Discurso eu faço sem música. E no funk, gosto de Kool & The Gang, Sly & The Family Stone, James Brown. Funk carioca eu admiro, ou melhor, admito como carnaval, algo sem compromisso nenhum. Não encaro com seriedade.

KID ABELHA: "O portão" parece roteiro. Foi inspirada num filme? Você gostaria que alguma canção sua fosse filmada?

ERASMO: Roberto trouxe o tema de "O portão". Ele se inspirou na volta para casa, muito comum para nós artistas, que viajamos muito. Aí detalhamos isso: a sensação de chegar, a mulher esperando. Muitas de nossas músicas são cineminhas. Gostaria de ver várias filmadas. "Detalhes", "Sentado à beira do caminho", "Haroldo, o robô doméstico"...

SEVERINO FILHO (OS CARIOCAS): O que achou dos Cariocas em "Pão de Açúcar"?

ERASMO: Desde pequeno eu sonhava ter a marca Cariocas numa canção minha. Demorou 55 anos. Quando Tim Maia gravou o CD dele com os Cariocas, fiquei morto de inveja. Ele gravava e mandava as fitas, me sacaneando: "Aí, seu puto, você sempre sonhou com isso, eu que fiz" (risos). Certa vez, estava com Lúcia Veríssimo (filha de Severino) num barzinho no Leblon. Disse: "Um dia vou gravar com seu pai e os Cariocas". Ela pegou o celular, discou e falou: "Oi pai, estou com Erasmo, fala com ele". Fiquei assim (gagueja, faz expressão sem graça): "Oi, Severino, como é que vai, só falei que um dia queria gravar com você". Ele respondeu: "Vamos fazer sim". Agora saiu.

MILTON NASCIMENTO: Você já contou para alguém que devo minha vida a você?

ERASMO: Não, porque você é tão importante que esse fato merece foco especial. Só contarei no meu livro. Estou escrevendo ainda. São crônicas, causos dos quais participei, ao lado de outras pessoas. Todos da minha memória, não ligo para ninguém para saber como foi. Se alguém não gostar, paciência.

MARISA MONTE: A melodia de "Não quero ver você triste" não tinha letra na gravação original. Você apareceu com uma. Conte essa história.

ERASMO: Um dia Mario Telles, irmão da Silvinha, pediu autorização para letrar essa melodia. Ele fez, gravou, a Claudette Soares gravou também. São os dois registros da letra, ambos sem a parte recitada. Quando eu e Marisa pensávamos no que fazer, me lembrei dessa letra. Fizemos experiências, com ela cantando e eu recitando ao mesmo tempo, ficava confuso. Até que ela gentilmente se ofereceu para fazer larará para mim. Marisa Monte fazendo larará para mim, bicho? Sabe o que é isso? Há um tanto de ineditismo, porque essa letra era pouco conhecida.

SAMUEL ROSA (SKANK): Tremendão, fale sobre a evolução, se é que você acha que houve, do rock brasileiro.

ERASMO: O rock são tantas vertentes... O hard rock, o heavy não me seduzem. Os caras cantam assim (urra), as guitarras são muito altas. Isso me dificulta para ouvir a letra e a sutileza da melodia, se é que existe. Do que tenho visto hoje, poucas coisas me satisfazem. Mas sei que é assim, não quero mudar. Rock é liberdade. Mas sinto falta da melodia. Outra coisa: a eletrônica passou a fazer parte da música. O cara que antigamente tomava aulas de piano hoje tem que aprender uma parafernália tecnológica. E música é tão simples. Tudo é válido, claro, mas não curto para mim. De repente estou por fora pracaramba, pode ser que só 1% concorde comigo, mas tudo bem. Seria muito chato se todo mundo fosse uniformizado. A não ser que fosse de jeans (risos).

CHICO BUARQUE: Olha, você tem todas as coisas?

ERASMO: Não, não tenho não (pensa). Eu posso dizer que não tenho todas as coisas e... (olha pela janela, sério, e fica calado por 1 minuto) nunca vou ter. Ninguém tem.

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