
Maria do Rosário Pedreira, a caçadora de novos autores
Há pilhas de manuscritos sobre a secretária e outras pilhas esperando nas prateleiras, e Maria do Rosário Pedreira parece ainda mais pequena e franzina no seu gabinete enfrentando a tarefa de descobrir a literatura do futuro. É ela a editora de João Tordo, foi a primeira a editar os romances do poeta valter hugo mãe, foi quem lançou José Luís Peixoto, vencedor fulgurante do Prêmio José Saramago com a primeira obra Nenhum Olhar, e recentemente foi contratada pelo grupo Leya para continuar o seu trabalho de editar novos autores de língua portuguesa.
Livros:
Fica Comigo Esta Noite
Inês Pedrosa. Planeta, 160 págs. R$ 39. Contos
Inês Pedrosa faz prosa, mas parece poesia, e essa arte escrita até soa como música. "Enquanto os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as coisas de que era capaz." A frase de abertura do conto "Sexo" dá a medida do poder de sugestão e sedução pela palavra dessa autora que já escreveu o seu nome na História literária lusitana.
Todos os Dias
Jorge Reis-Sá. Record, 216 págs. R$ 32,90. Romance
Jorge Reis-Sá é prosador e poeta, e por transitar por esses dois gêneros, o seu texto final é prosa-poética. Tudo o que ele escreve está na fronteira, sempre com melodia. Basta ler em voz alta: "A morte leva sempre quem escolhe. Uma filha, um homem que é pai dela, um neto. Quando escolhe." O livro acontece de uma aurora até o escurecer repleto de estrelas e tudo sugere que um dia pode revelar toda a vida de um homem.
A Máquina de Joseph Walser
Gonçalo M. Tavares. Companhia das Letras, 164 págs. R$ 39. Romance
Nesta ficção, o personagem central é perseguido e oprimido por todos os que estão ao seu redor. A narrativa faz ver como as pessoas tendem a se modificar a partir do momento que assumem qualquer cargo de poder. Joseph Walser perderá tudo, talvez até a própria vida, diante dos "aprendizes de Hitler" que o cercam. Saramago disse para Tavares: "Não tem o direito de escrever tão bem com apenas 35 anos."
Cemitério de Pianos
José Luís Peixoto. Record, 304 págs. R$ 42,90. Romance
Peixoto tem na realidade apenas o estopim, o ponto de partida, para as suas ficções "mui" inventivas. No caso deste romance, o personagem central tem conexões com um atleta português que faleceu de insolação após cumprir trinta quilômetros na maratona dos Jogos Olímpicos de Estolcomo, em 1912. A partir do real, Peixoto viaja e apresenta mundos paralelos, em que esqueletos de pianos se assemelham aos de humanos. Ele tem 36 anos.
Editoras brasileiras viabilizam a nova ficção do além-mar
A Língua Geral é uma editora que surgiu, em 2006, com a finalidade de publicar, exclusivamente, obras de literatura escritas no idioma português. Entre os 53 títulos, há livros de angolanos, brasileiros, portugueses e timorenses.
Lisboa (Portugal) - Antes, o escritor curava e às vezes salvava de perigo de morte os doentes, o escritor resolvia em tribunal divórcios ou crimes entre marido e mulher, o escritor construía pontes e dormia mal de noite porque as estruturas se fragilizavam nos sonhos, o escritor ordenava papéis, carimbava certidões, lambia selos apagando-se numa repartição pública. Agora, o escritor escreve.
Há alguns anos, qualquer profissão por mais esdrúxula que fosse guarda florestal, tratador de golfinhos, até astronauta poderia potencialmente dar dinheiro, viver-se dela. Mas escrever nem pensar! Que criança desejava ser escritor quando o escritor era uma pessoa que trabalhava todo o dia e depois de acabar o trabalho continuava a trabalhar para escrever livros que não vendiam?
Os escritores da geração pós-25 de Abril, em Portugal, talvez tenham pensado ser bombeiros ou polícias ou bailarinas ou atrizes como todos os outros meninos e meninas quando lhes perguntavam o que queriam ser quando fossem grandes. Agora que são grandes, não têm dúvidas de que é possível ser escritor o tempo inteiro. Mas são eles escritores como valter hugo mãe, João Tordo ou Dulce Maria Cardoso os primeiros.
valter hugo mãe: a máquina de fazer escritores
Encontramo-nos na praia de Matosinhos, junto das estátuas de mulheres de coxas grossas que levam as mãos à cabeça e apontam na direção do mar onde sempre morreram, e morrem ainda, tantos maridos.
valter hugo mãe vive noutra terra de pescadores, onde quando não se morre no mar, morre-se de desgosto por não sair para a pesca, um pouco mais a norte: Vila do Conde, também de Eça de Queirós e de José Régio.
valter hugo mãe chega vestido de preto e de boné parecendo mais um cantor pop (que também é, desde que recentemente formou a banda Governo) do que um escritor, e parecendo mais pertencer a Londres, onde esteve dias antes do nosso encontro para participar num festival, do que à Vila do Conde.
Em Londres, nesta última visita, uma senhora inglesa disse-lhe que sentia que ele exprimia "a angústia do homem europeu contemporâneo".
"Isto no meio da City, tão vanguardista", conta valter hugo mãe. "Depois, em conversa com ela, acabei por perceber que falar de mim a partir de Vila do Conde provinciana é falar ainda de uma Europa que por mais sofisticada que possa ser não me é tão distante assim."
valter hugo mãe acorda de manhã em Vila do Conde, e quando está verdadeiramente acordado, o que leva o seu tempo, começa a escrever.
Ultimamente passa muito tempo frenético na companhia de três irmãs e um homem que é tudo para elas. Antes, passou muito tempo em solidão com um homem de 84 anos que fica viúvo e é posto num lar, em a máquina de fazer espanhóis, lançado em janeiro e já na quarta edição. Quatro romances e um prêmio José Saramago, depois, aos 39 anos, valter hugo mãe tem lançamentos agendados para França e Espanha e também para o Brasil (Editora 34).
Depois de tudo isto, o escritor valter hugo mãe acorda de manhã numa pequena terra de pescadores no norte de Portugal, e quando está verdadeiramente acordado, o que leva o seu tempo, continua a escrever.
Escrever pode ser então ver um filme, descobrir um artista plástico, esperar pelo tempo certo das decisões, ir meditando o livro. Uma das coisas mais importantes que um professor lhe ensinou na escola foi que "o ócio atiça o engenho para a arte". Nessa altura, ainda não se preocupava em ser escritor. E agora, ainda não se preocupa em ser escritor, tentando não se deslumbrar pelos festivais, os prêmios e outras máquinas de fazer escritores. Preocupa-se sim, com ter muito tempo para a escrita. "O meu percurso há-de ser desenhado pela natureza dos livros", diz.
João Tordo: sobretudo histórias
João Tordo vem muitas vezes ao Jardim da Estrela em Lisboa. A esplanada está quase toda na sombra e dependendo da orientação da cadeira, ora tem vista para as crianças que dão de comer aos patos no lago ora para os velhos sentados nos bancos a ver quem passa. Mas Lisboa, embora muitas vezes pareça, não parou no tempo. O empregado, por exemplo, é brasileiro, muitos dos clientes são estrangeiros, e Lisboa é hoje uma cidade europeia cosmopolita.
João Tordo nasceu no ano a seguir à Revolução dos Cravos. Tinha 11 anos quando Portugal entrou para União Europeia. Cresceu a ler o que lhe apeteceu. Diz que foi influenciado não só pelos ingleses e americanos, mas também pelos sul-americanos, e ainda, aqui tão perto, pelos espanhóis.
Viajou para Londres e depois Nova Iork para ser barman ou jornalista ou o que calhasse. Voltou para Lisboa decidido a escrever livros.
Da mesma maneira que leu o que lhe apeteceu agora escreve o que lhe apetece. E nas histórias continua a viajar para Londres e outros lugares.
Fica um pouco triste quando lhe perguntam: "Escreves sobretudo histórias, não é?". Como se as histórias não fossem literatura, ou vice-versa, como se se pudesse escrever sem contar uma história.
Mas essas "sobretudo histórias", numa linha mais anglosaxônica do que tradicionalmente portuguesa, valeram-lhe, com As Três Vidas, que acaba de sair em França e sairá brevemente no Brasil, o prêmio José Saramago, o último a ser atribuído em vida do escritor, colocando-o numa lista de vencedores com Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, valter hugo mãe.
Uma das coisas que João Tordo quer dizer, e que fique dito logo a seguir a esta lista de nomes, é que em Portugal "não há uma geração".
Há escritores entre os 30 e os 40 anos a ganhar visibilidade nacional e internacional. Há uma geração de escritores profissionais, vivendo da escrita, como nunca existiu. Mas não há uma geração no sentido que a palavra tinha no século 20. "O Lobo Antunes e o José Cardoso Pires eram amigos, saíam juntos, trocavam textos, liam-se um ao outro", lembra João Tordo. "Nós não fazemos isso. De repente, com sermos profissionais disto tornamo-nos um bocadinho egoístas."
Dulce Maria Cardoso: O meu futuro
Dulce Maria Cardoso quis ser escritora logo aos 11 anos. Aos 14, inscreveu-se na escola O Meu Futuro para aprender datilografia. "Passei um verão fechada numa escola a treinar os dedos para ser escritora", escreve por e-mail desde a Alemanha. "Se conto este episódio risível é para dar a ideia da ingenuidade com que encarava a escrita."
Mas talvez seja preciso alguma ingenuidade para ser escritora. Depois de treinar os dedos, descobriu com ingenuidade, que escrever não era profissão, e foi, com ingenuidade, uma advogada que escrevia e a seguir rasgava ou queimava.
Um dia, e talvez sem ingenuidade não fosse possível, concorreu a uma bolsa de criação literária do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (bolsas hoje inexistentes), ganhou e escreveu o primeiro romance, Campo de Sangue. Com o segundo, Os Meus Sentimentos, ganhou o ano passado o prêmio da União Europeia para a Literatura, que fez com que fosse traduzida para várias línguas.
Dulce Maria Cardoso não tem a certeza que faça parte da nova geração de escritores portugueses, porque já completou 46 anos. Não tem a certeza que faça parte de uma nova geração de escritores portugueses porque parece-lhe que não pode ser metida no mesmo saco que valter hugo mãe, José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares ou João Tordo.
Dulce Maria Cardoso também não tem a certeza que seja possível ainda viver da escrita e que todas as atividades paralelas à escrita de promoção e de ganha-pão não roubem tanto tempo à literatura quanto antigamente roubavam as outras profissões dos escritores.
Ela não tem a certeza que os escritores tenham mudado. Talvez tenha sido o mundo que mudou, escreve-nos desde a Alemanha onde está a fazer uma residência de escrita na Villa Concordia: "O mundo tornou-se mais pequeno." Não tem sequer a certeza que seja muito importante estar agora na Alemanha ou que os escritores portugueses tenham que andar por este mundo agora mais pequeno.
Ela tem a certeza de que Flannery OConnor tinha razão quando escreveu que "qualquer pessoa que sobreviveu à infância tem informação suficiente para o resto dos seus dias". Para escrever não são precisos prêmios nem residências nem fazer parte de uma geração. Basta viver.
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