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O escritor argentino Julio Cortázar, já em Paris, onde viveu 30 anos de “autoexílio” | Divulgação
O escritor argentino Julio Cortázar, já em Paris, onde viveu 30 anos de “autoexílio”| Foto: Divulgação

"Voltar a coisas já escritas pode parecer muito fácil, mas no meu caso pelo menos sempre me foi mais fácil inventar que repetir. Acontece porém que certas repetições, que prefiro chamar de recorrências, me ocorrem com a mesma evidência que diariamente todos têm da inevitável saída do sol. E se essa maravilha cotidiana não nos assombra porque conhecemos a relojoaria geral do cosmos, há outras repetições perceptíveis em um domínio que nenhuma ciência ainda explicou, repetições que pertencem àqueles interstícios do habitual em que leis que não são as da física ou da lógica se cumprem de uma maneira quase sempre inesperada."

Excerto do conto "Do Outro Lado".

"No restaurante dos cronópios acontecem essas coisas, a saber que um fama pede com grande concentração um bife com batata frita e fica danadodavida quando o cronópio garçom lhe pergunta quantas batatas fritas quer.

– Como, quantas? – vocifera o fama. – O senhor me traz batata frita e pronto, que droga!

– É que aqui servimos em porções de sete, trinta e dois ou noventa e oito – explica o cronópio.

O fama reflete um pouco, e o resultado da sua reflexão consiste em dizer ao cronópio:

– Olhe, meu amigo, vá à merda."

Trecho do conto "Almoços", integrante de Papéis Inesperados.

O Natal de 2006 reservara um presente extraordinário ao editor catalão Carles Álvarez Garriga. Obcecado pela obra do argentino Julio Cortázar desde a adolescência, a quem dedicou sua tese de doutorado em filologia hispânica, Garriga fora convidado pela amiga e tradutora Aurora Bernárdez naqueles últimos dias de dezembro para dar uma espiada em um punhado de "papeizinhos" que encontrara em seu apartamento parisiense. Para seu assombro, o que aquela senhora de 90 anos – que havia sido a primeira esposa do autor de O Jogo da Amarelinha – retirava das gavetas de uma velha cômoda eram textos nunca antes publicados em livro, alguns guardados há mais de seis décadas.

O resultado desta descoberta deu origem a Papéis Inesperados, volume com quase 500 páginas e mais de cem escritos inéditos do autor argentino, selecionados pela dupla e publicados pela primeira vez em 2009, aos 25 anos da morte de Cortázar.

Menos de um ano depois, a obra chega ao Brasil pela editora Civilização Brasileira, com tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht – os mesmos que em 2008 verteram para o português os quatro tomos de O Último Round e A Volta ao Dia em Oitenta Mundos, também de autoria do grande cronópio.

Os escritos foram agrupados em três temas centrais: prosas, poesias e "entrevistas em frente ao espelho", nas quais Cortázar responde longa e sinceramente a perguntas inventadas por ele mesmo – talvez uma forma de expressar sua visão de mundo sem ser mal-interpretado pela imprensa, sobretudo suas opiniões políticas a respeito da revolução cubana.

A primeira parte, no entanto, é onde estão os maiores achados de Aurora e Garriga: contos completamente desconhecidos de seus leitores, 11 episódios novos do livro Um Tal Lucas, notas sobre um capítulo suprimido de O Jogo da Amarelinha, versões alternativas para os contos "As Caras da Medalha" e "Relato com um Fundo de Água", entre outras raridades. Há anos sabia-se, por exemplo, que Cortázar havia deixado de fora cinco relatos que integrariam a coletânea Histórias de Cronópios e de Famas, clássico da contracultura nos anos 1960. A boa notícia é que três deles finalmente poderão ser lidos nestes Papéis Inesperados, mostrando que as tais criaturas pequenas, verdes e úmidas descritas pelo autor continuam sensíveis e sarcásticas.

Além-túmulo

Toda obra publicada postumamente suscita discussões acerca de seu real valor literário – uma das polêmicas recentes do mercado editorial foi justamente a edição de O Original de Laura, romance inacabado e de qualidade questionável, escrito por Vladimir Nabokov, que teria virado cinzas se seu filho fosse mais obediente.

Cortázar era um autor exigente consigo mesmo, tanto que sua estreia literária só aconteceu aos 35 anos de idade, com o poema dramático Os Reis, uma releitura do mito do Minotauro. Se ele deixou aquelas folhas datilografadas de fora de sua bibliografia, havia uma razão para tal, certo? O fato é que o mestre da prosa curta havia dado plenos poderes a sua ex-mulher e herdeira universal para editar o que bem entendesse, e Papéis Inesperados prova que Aurora Bernárdez não se equivocou. O conto de abertura do livro, "A Adaga e a Flor-de-Lis" revela o trabalho cuidadoso de linguagem do autor, um perseguidor da grande arte tal qual o jazzista Charlie Parker. Pouco depois vem "Os Gatos", conto de formação que bem poderia ter integrado a coletânea Final do Jogo, de 1969, um dos pontos altos de sua obra.

(Re)encontros

Entre as preciosidades do volume está o hilário e em certo sentido diabólico "Manuscrito Achado Perto de uma Mão", provavelmente uma brincadeira com o clássico "Manuscrito Encontrado numa Garrafa", de Edgar Allan Poe, também parodiado por Cortázar no conto "Manuscrito Achado num Bolso", do livro Octaedro –que serviu de inspiração para o filme brasileiro Jogo Subterrâneo, de Roberto Gervitz. Depois de tantos bilhetes encontrados nos lugares mais inesperados, é curioso que os escritos perdidos de Cortázar tenham sido achados na gaveta da cômoda de casa. Aliás, deste mesmo móvel saíram outras obras póstumas de valor, como Divertimento, O Exame Final e Diário de Andrés Fava, para citar apenas as lançadas no Brasil. Resta saber se a tal gaveta tem fim ou se continuará, para sempre e à maneira da literatura fantástica, presenteando seus leitores com tesouros como este.

Serviço:

Papéis Inesperados, de Julio Cortázar. Civilização Brasileira, 490 págs. R$ 62,90. Contos e crônicas.

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