O ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná Miguel Kfouri Neto já chegou a trazer da França 33 quilos de livros - pagos em várias prestações - para completar sua coleção particular.
PauloVenturelli, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, comprou um apartamento que é habitado por 15 mil seres fantásticos: seus livros. Ele faz questão de os separar por país de origem.
O Caderno G visitou estes templos construídos por meio de décadas de investimento e dedicação. Veja a seguir o que guardam em suas estantes e o que motiva os donos de grandes bibliotecas particulares de Curitiba a manter milhares de obras em suas casas.
Paulo Venturelli - Um apartamento só para os livros
“Quando eu era adolescente, eu tinha um professor que dizia: para ser inteligente, é preciso ler um livro por semana”. O conselho dado ao professor aposentado da Universidade Federal do Paraná Paulo Venturelli foi mais do que seguido à risca. Foi necessário para lá de um livro por semana para encher as estantes do apartamento comprado exclusivamente para abrigar sua biblioteca. Hoje já são 15 mil livros de um acervo que continua crescendo.
O primeiro exemplar ele guarda até hoje: Boitempo, de Carlos Drumond de Andrade, adquirido em 1968 com o dinheiro do almoço do dia. “Almoçar eu almoçaria no dia seguinte. Já o livro poderia não estar mais lá”, recorda.
Assim como essa obra de grande valor pessoal, qualquer outra, entre as milhares, pode ser encontrada “no escuro” pelo professor. Ele sabe onde está cada um dos livros, que ficam separados por país: Brasil, Inglaterra, França, Índia, Japão, Turquia e tantos outros. Os títulos, além de literatura, abordam história, política, futebol e tantos outros também. Tem livros que já leu dez, quinze vezes. “Cada livro que leio é uma vida nova, um universo novo. Tenho uma vida que se renova a cada dia sem o peso da mesmice”.
Entre temas atuais e de seu interesse, alguns são apenas resgate das lembranças da adolescência. Da trilogia da autora francesa Raoul de Navery, que havia lido quando estava no colégio interno, faltava o primeiro volume “Sepultada Viva” que finalmente conseguiu em um sebo. Veio com uma dedicatória datada de 1952 de uma madre para uma aluna. Esse é um dos que ainda hesita em reler. Receia que o encanto produzido pela leitura na adolescência não se repita.
Venturelli também é doutor em literatura, membro da Academia Paranaense de Letras e tem cerca de 20 obras publicadas.
Miguel Kfouri Neto - 33 quilos de livros
Grandes referências do direito nacional e internacional podem ser encontradas na biblioteca do desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná Miguel Kfouri Neto. O acervo foi sendo montado ao longo de mais de 30 anos com clássicos, lançamentos, obras esgotadas, periódicos e tudo o que poderia ser relevante para o estudo do direito. A biblioteca chegou a ter 9 mil exemplares, contando as revistas de jurisprudência, mas hoje tem “apenas” cerca de 3 mil, incluindo outros temas.
Leitor voraz, Kfouri Neto tem formação em letras e foi professor de português. Mas o vício em comprar livros começou depois de ser aprovado no concurso para magistratura, em 1984. Entre as principais aquisições estavam obras usadas como referência em acórdãos dos tribunais ou citações em petições. “Não sossegava enquanto não adquiria tal livro, se já não o tivesse, para conferir a transcrição”, revela.
Também ia colecionando exemplares para utilizar nas aulas de direito processual civil que lecionava, para o mestrado, doutorado e para os três livros que publicou relacionados ao direito médico e da saúde. Esse tema ocupa em torno de 20% do espaço da biblioteca.
Chegou a trazer 33 quilos de livros de uma viagem que fez à França; comprou de uma vez 30 volumes do jurista português Cunha de Gonçalves, pagos em várias prestações.
A certa altura, quando ainda morava no interior, sua esposa proibiu a entrada de vendedores de livros em sua casa. “Eu tinha que ver os livros na esquina, longe dos olhos dela”, lembra.
Quando veio a Curitiba teve que ir se desfazendo de uns tantos “com dor no coração”, pois a situação ficara insustentável. Hoje eles ainda ocupam mais de um cômodo da casa, além da biblioteca, contrariando a advertência contida no primeiro livro que leu na magistratura: “De regra, nossas casas e apartamentos já não tem lugar para bibliotecas, além disso, a grande biblioteca é um luxo caro e desnecessário” - A Voz da Toga, Eliézer Rosa.
Biblioteca Roberto Campos - Homenagens de Bill Clinton e da Rainha da Inglaterra
Entrar na sala Roberto Campos, da biblioteca da Universidade Positivo, é como invadir uma parte do universo particular de um dos maiores economistas que o Brasil já teve. Roberto Campos morreu em 2001 e deixou um acervo de mais de 8 mil obras com anotações e dedicatórias que podem ser consultadas pelo público.
Sua vasta coleção de livros foi disputada por várias instituições, sendo, ao final, adquirida pelo Grupo Positivo que não revela o valor pago. O acervo está aberto para consulta pela comunidade em geral, mas não pode ser emprestado.
Admirado pela inteligência e pelo conhecimento na área econômica, Campos foi ministro, embaixador e escritor. Em sua gestão nasceram o Banco Central, o FGTS, a caderneta de poupança. Implementou reformas, elaborou programas de governo, foi também senador, deputado e deixou uma série de outros legados.
Quem examinar o acervo perceberá seu grande prestígio ao se deparar com homenagens assinadas pela rainha da Inglaterra e o ex-presidente do EUA Bill Clinton.
A biblioteca expõe cerca de 30 objetos que pertenceram a Campos.
Observando as prateleiras, descobrirá seu interesse pelos mais variados assuntos e grande inclinação pelas biografias. A quantidade de dicionários também impressiona. Um deles, o “Novo dicionário da língua portuguesa”, de Jânio Quadros, conserva a dedicatória do autor: “Ao embaixador Roberto Campos, mesmo sabendo que a obra lhe é supérflua”.
As obras de autoria de Campos também estão disponíveis no acervo. O economista Gustavo Franco foi um dos frequentadores assíduos do local, que serviu de fonte de pesquisa para o seu livro “A leis secretas da economia: revisitando Roberto Campos e as leis do Kafka”.
René Dotti - Bibliotecária para cuidar do acervo
Grande admirador das bibliotecas bem formadas, Renê Dotti, um dos mais respeitados juristas do Brasil mantém em casa seu próprio acervo de obras seletas. Livros não se compra por metro, sugere ele.
Não à toa, tem uma coleção de obras raras: do Código do Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil, de 1882, a uma edição italiana da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, dedicada A sua Maestá Dom Pedro IIº, Imperatore del Brasile. Da obra poética Paraíso Perdido, de John Milton, possui quatro versões, a mais antiga é de 1789.
A bibliotecária, Mônica Catani, contratada para cuidar do acervo, registrou até o momento 5600 obras, mas estima ter mais de 15 mil. O acervo valioso ganhou seus primeiros itens nos anos 50. Em princípio, eram relacionados ao tema de interesse do então estudante de direito. “Mas sempre achei que atividade de advogado era complementada de literatura, de arte...”, ressalta Dotti, que também é membro da Academia Paraense de Letras.
Muitos dos exemplares foram adquiridos em feiras de antiguidade ou em sebos de vários cantos. Mas não é apenas às coleções antigas que Dotti dispensa atenção. Está sempre alerta aos lançamentos ou ao que “está na ordem do dia”. Uma das aquisições mais recentes é reedição de “Ópio dos Intelectuais”, de Raymond Aron, que ganhou nova tradução em 2016.
Os dicionários também têm lugar especial nas prateleiras, dos mais interessantes, como o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, aos mais curiosos, como o “Dicionário de Palavrões”.
O espaço faz jus ao valor das obras, sendo elegantemente decorado com peças de artes e objetos antigos. Ao fundo, um minipalco revela que o encanto pelo teatro segue intacto. Antes do direito, Dotti fez parte de um grupo que tinha Ary Fontoura entre seus integrantes.
Todo esse arsenal de conhecimento não fica restrito às quatro paredes da biblioteca. As penitenciárias que visita é um dos destinos das doações que costuma fazer.
Marcelo Almeida - Indicações de Michel Temer
Formado em engenharia civil, Marcelo Almeida, ex-vereador e ex-deputado federal, indica que se tivesse que exercer a profissão seria a de engenheiro dos livros. “O curso de engenharia foi um erro”, aponta. “Eu deveria ter feito jornalismo, letras...”. O entusiasmo pela leitura logo entrega sua afinidade com a área de Humanas.
A relação de amor com os livros tornou-se forte na faculdade e teve como grande cupido o respeitado escritor curitibano Jamil Snege (1939-2003) de quem foi amigo pessoal. “Ele colocou uma frase que mudou minha vida: ‘você vai ser o que você ler”. Desde então, mergulhou na leitura, tendo preferência pelos romances.
Mas em sua biblioteca particular, que deve passar dos 1500 livros, tem também muito de política, urbanismo, história, autoajuda. “Se eu leio autoajuda? Eu leio qualquer coisa. Tirei uma coisa muito boa daqui”, diz, antes de recitar um trecho de “Como Chegar ao Sim”, de William Ury.
Fora os livros pessoais, compra centenas de um mesmo exemplar para distribuir aos integrantes do “Conversa Entre Amigos”, clube que criou há mais de dez anos para reunir leitores e autores e promover discussão sobre as obras. A reunião é feita em torno de cinco vezes ao ano e já teve nomes internacionais e locais, como Mia Couto, J.M. Coetzee, Laurentino Gomes e Domingos Pellegrini.
O prestígio adquirido pela vivência no mundo da literatura é ressoante. Recentemente, retornou de uma viagem a Brasília com mais três exemplares na bagagem: “O Arroz de Palma”, de Francisco de Azevedo, “Querido Líder”, de Jang Jin-Sung, e “A Nascente”, de Ayn Rand. Foram indicações do presidente da República, Michel Temer, com quem se reuniu para uma conversa, garante ele, exclusivamente sobre literatura.
De épocas de efervescência na política prefere tirar proveito apenas dos assuntos e temas discutidos, ir fundo nas leituras e aprender sobre fundamentos da democracia e governos.
Paulo José da Costa - Discoteca judaica
O gosto pela leitura e o dom para o comércio manifestaram-se desde cedo na vida de Paulo José da Costa. Na década de 50, com 6, 7 anos, já lia as célebres quadrinizações e gibis da época e participava dos eventos onde se faziam trocas de exemplares. “Eu ia com 50 gibis e voltava com 54 e a minha pilha ia sempre aumentando”, relembra.
A pilha cresceu e variou tanto que acabou virando o tradicional sebo Fígaro de Curitiba com 20 mil livros em estoque. O acervo particular tem “mais ou menos 3 ou 4 mil obras”, calcula Costa.
Assim como no estabelecimento, a coleção de casa está mais para “culturoteca”, pois além dos livros, é composta por discos, DVDs e fotografias. Começou com livros sobre música e hoje tem, basicamente, obras de história, música e arte e nada de literatura. “Perdi o gosto pela ficção. Gosto de coisas que aconteceram”, explica. Também por causa do volume prefere limitar-se ao que realmente tem interesse.
Por isso, tem sempre o trabalho de fazer um bom garimpo em bibliotecas privadas inteiras que lhe são oferecidas para compra. De cada cem livros que vão para o sebo, dois ou três ele leva para casa. Nessa de examinar acervos, se depara com fotografias antigas que para ele são valiosas narrativas revelando todo o contexto de uma época ou lugar. Os retratos acabam sendo incorporados ao material adquirido e já superaram em muito o número de livros: cerca de 30 mil.
Na parte audiovisual ele estima ter uns 4 mil vinis, 5 mil CDs e mais de 3 mil DVDs. A discoteca iniciou aos 10 anos e tem todos os gêneros do Brasil e muitos de outros países. “Sou muito eclético, mas, claro, só tem coisa boa”, assegura. Isso inclui música clássica, jazz, composições regionais e até uma discoteca judaica de uns 300 discos.
Muitas obras são raras e algumas de valor inestimável, como um disco de Heitor Villa Lobos com assinatura e um “aprovo” escritos pelo ele. É um disco enviado pela gravadora para avaliação e aprovação do maestro e compositor na década de 1940.