Há uma saudade unânime na classe artística de Curitiba que se formou, cresceu e respirou a efervescência cultural do Teatro Guaíra entre as décadas de 1970 e 1990: a cantina, considerada por eles o coração do espaço. Lá, entre um café e uma Coca-Cola, acompanhados por um pedaço de nega maluca da Tia Diva que administrou o espaço por alguns anos surgiram projetos, namoros e amizades que já perduram por mais de 30 anos.
Nem os antigos frequentadores ou o próprio Teatro Guaíra têm um registro exato de quando a cantina começou, mas, estima-se que tenha durado do início dos anos 1970 até o começo dos 2000. O espaço, conta o diretor e dramaturgo Enéas Lour, tinha cerca de 12 mesas e um grande balcão de madeira. "Eu iniciei minha carreira em 1974, e já tinha a cantina, que era frequentada por toda a classe artística diariamente. Ali discutíamos projetos, ríamos muito, conversávamos, sonhávamos. Era nosso ponto de encontro entre cafés e Coca-Colas."
Na época, o teatro abrigava uma escola de teatro próprio, além do balé e, anos depois, a Orquestra Sinfônica do Paraná (OSP), criada em 1985. Portanto, um local que atendesse funcionários e artistas era praticamente obrigatório. A convivência próxima entre os corpos estáveis, diz o ator, sonoplasta e fotógrafo de teatro Chico Nogueira, gerou até casamento entre artistas do balé e da orquestra. "Hoje em dia, as artes estão mais separadas. É um pouco saudosista, mas foi um momento muito legal."
SocializaçãoO ator Ranieri Gonzalez, que "cresceu no Guaíra", e participou de várias montagens próprias do teatro, como óperas comandadas pelo diretor Marcelo Marchioro, acredita que a cantina era o centro de tudo o que acontecia no teatro. "Nós nos encontrávamos para conversar, comer, fechar contratos. Bastava ver e ser visto para ser convidado para uma produção."
As atrizes Nena Inoue e Claudete Pereira Jorge chegaram a assumir a administração da cantina, após a saída da Dona Diva, entre 1984 e 1986. Foi nos ensaios de um espetáculo chamado Zumbi, um musical com grande elenco, que ambas começaram. "A gente ficava muito tempo ensaiando, aí a cantina fechava e não tinha comida. Resolvemos começar a fazer umas coisas para levar, sanduíches, um bolinho de mandioca maravilhoso que a Claudete fazia, e vendíamos no intervalo. Nesse mesmo tempo aconteceu de a Tia Diva sair, e assumimos a cantina."
Conciliar a administração com a atuação foi pesado, já que a dupla fazia desde a gelatina para os bailarinos, que, segundo Nena, eram os frequentadores mais assíduos do espaço (pois assim não precisavam trocar a roupa do ensaio), até o almoço e jantar. Além disso, era preciso administrar as finanças, concentradas basicamente no sistema de caderninho, com respectivos nomes e gastos registrados para serem pagos no fim do mês. O que se mostrou uma péssima alternativa, considerando a inflação da época. "Era uma outra relação de negócio, era mais de troca e presença física, que é algo que estamos perdendo." Nena crê ainda que a cantina era responsável pela socialização entre os diferentes cargos do teatro. "O bailarino encontrava o motorista, as pessoas conversavam mais. Era um espaço incorporado."
Encontros
Em 1989, convidado para fazer um trabalho com o Teatro de Comédias do Paraná (TCP), o espetáculo A Vida de Galileu, o ator Paulo Autran (1922-2007) também conviveu com vários profissionais na cantina entre eles, Chico Nogueira, de quem ficou amigo. "Ficávamos lá ouvindo as suas histórias até fechar, e depois seguíamos para o Bar do Max, entre a rua Mariano Torres e Tibagi", recorda. O espaço, diz, era uma oportunidade de trocar uma palavrinha com atores e atrizes consagrados, como Fernanda Montenegro. "Era comum dar de cara com ela, sentada comendo um sanduíche de queijo."
O diretor e dramaturgo Edson Bueno também teve encontros, no mínimo, interessantes, sobretudo porque vivia o teatro "full time" quando começou a carreira nos anos 1980. "Um dia, me cai na cantina o Baryshnikov [consagrado bailarino russo que fez um espetáculo na cidade em junho de 1980]. Essas coisas ficam na lembrança, tudo da classe teatral acontecia lá. Havia brigas, reencontros. Era um lugar muito bonito. Toda cantina é assim: tem essa coisa brejeira, folclórica."
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