David Foster Wallace, morto no ano passado aos 46 anos, é o grande escritor de sua geração. No texto a seguir, pesquisador apresenta trechos da autópsia do autor suicida e explica por que ele é genial
Doze de setembro, não pôde mais. Quarenta e seis, chegava ao fim.
Em pouco mais de 20 anos, dois romances, três livros de contos, ele se estabeleceu inquestionadamente como o grande escritor de sua geração. Um ex-professor recentemente declarou que demorou muito a perceber que David Foster Wallace não era um filósofo genial que por acaso escrevia literatura, mas o contrário.
Da autópsia: "homem, branco, nascido a 21 de fevereiro de 1962, 1,83 metro, 73 quilos".
Depois de sua morte foi bastante divulgado um discurso que ele proferiu na formatura de uma turma da universidade de Kenyon, em 2005. Inclusive aqui, na revista piauí. Trata-se de uma das mais bonitas lições de ser gente que eu já pude ler. Era, ora se veja, alguém capaz de fazer um discurso de formatura virar um clássico.
"Enforcamento: A causa da morte depende das condições, mas é normalmente a secção da medula entre as vértebras C1 e C2. Usualmente as vítimas não ficam imediatamente inconscientes. Na ausência de fratura, a oclusão dos vasos sanguíneos se torna a principal causa de morte. O rosto, então, tipicamente ficará inchado e cianótico e haverá a clássica marca do estrangulamento, as petéquias, pequenos pontos de sangue no rosto e nos olhos. A língua pode se projetar."
Vivendo na esteira do mais clássico pós-modernismo, com suas experiências metaficcionais de livros sobre livros sobre livros sobre autores, ele se preocupava, sim, com a literatura. Mas estava decididamente mais centrado em se perguntar o que ela faz. Para que ela serve. E isso, em sua visão, envolvia sempre dizer alguma coisa. Deixar o leitor menos sozinho, como ele mesmo disse. Permitir a coisa impossível que é vivermos ainda que brevemente dentro da pele e das meninges de um outro.
"Martelo. Pregou numa viga do telhado uma ponta do cinto. Sobre uma cadeira, com a cabeça no laço da fivela, atou as mãos com silver tape."
Era tremendamente reservado. Apenas agora soube-se um pouco de sua vida. Que tomava medicamentos antidepressivos havia mais de 20 anos. Que durante a universidade se internou em uma ala psiquiátrica de segurança máxima, porque declarou que não se sentia capaz de não se fazer mal. Que no último ano tinha parado com o remédio e caído novamente em profunda depressão que o medicamento, quando reempregado, não conseguiu mais conter. Que perdeu naquele ano 30 quilos.
Da autópsia: "Tatuagem no antebraço direito, com a palavra Karen e um símbolo de coração."
DFW foi o homem que me mostrou que a ficção, hoje, pode continuar sendo o meio mais poderoso de conhecimento humano de que dispomos. Que me mostrou que existem meios novos, sem ser novidadeiros, de falar das mesmas coisas que, sempre, nos fazem quem somos. E que acima de tudo mostrou, a mim e a toda uma geração, que essas mesmas coisas são efetivamente as mesmas de sempre, diretas, cafonas: amor, solidão, morte. Felicidade.
"Em casa com ele só os dois cachorros; sua mulher o deixara sozinho pela primeira vez em meses."
Provavelmente ficará mais conhecido por Infinite Jest, o calhamaço de 1.079 páginas que cimentou sua fama. Mas seu melhor livro é o último, Oblivion. Contos. Que reúne, entre outros, um relato dos últimos momento de um suicida e o conto mais complexamente estranho que se pôde escrever sobre o 11 de Setembro. A véspera de sua morte. Aqui, por enquanto apenas o brilhante Breves Entrevistas com Homens Hediondos (Companhia das Letras), que acaba de virar filme. Sua editora promete para abril uma edição especial daquele discurso. Há boatos, mas nada de definitivo sobre um romance inédito em que vinha trabalhando havia 12 anos. Seu pai declara que no último ano ele estava incapaz de escrever.
Da autópsia: "Cabeça normocefálica e coberta por cabelo marrom entre médio e longo. Apresenta calvície frontal. Não se notam petéquias. As passagens oronasais parecem desobstruídas".
Formalmente, era um escritor dos mais inquietos. No miúdo, se transformou no grande cultor da nota de rodapé na ficção e deixou famosa a conjunção composta, uma forma de abrir sentenças que, para ele, reproduzia a velocidade da fala confusa. E aí mas então ele era inquieto mesmo, e deixou de usar esses instrumentos assim que viraram "marcas". Seu vocabulário era uma mistura inaudita de erudito, abstruso, arcaico, popular, rueiro, tosco e o que mais viesse. No atacado, toda forma narrativa lhe interessava. Até mesmo o impossível "era só um sonho" na mão dele virou algo novo.
"Enforcamento (continuação): o fluxo sanguíneo para o cérebro pode ser comprometido pela obstrução das artérias carótidas, embora sua obstrução requeira muito mais força. (...) Quando a morte ocorreu por obstrução das carótidas ou por fratura cervical, o rosto tipicamente estará pálido e não ostentará petéquias."
Ele foi o grande responsável pelo ataque ao culto da ironia do século 20. Não cansou de tentar mostrar o quanto nosso registro cool, cínico, blasé, essencialmente inimputável, podia ter-se tornado aquilo que o crítico Lewis Hyde chamou de "o canto do prisioneiro que passou a amar as grades de sua prisão".
"Ficou um bilhete junto do corpo, ainda não divulgado."
Tenho no meu computador uma carta de agradecimento, que nunca mandei. Era não apenas um escritor que te levava a escrever cartas de agradecimento, mas alguém para quem isso faria sentido. Deixar o leitor menos sozinho e mostrar o quanto estamos todos de fato sós é, sem sombra de dúvidas, fazer o leitor melhor. Não como leitor, mas, de novo, como pessoa. Ele foi o escritor que me fez ver que isso era desejável, que o mundo literário tinha saudade dessa postura, e que soubemos e sabemos ser imbecis completos por torcer automaticamente o nariz para isso. Digo agora aqui: muito obrigado.
Da autópsia: "O falecido trajava bermudas, camiseta, roupa de baixo, meias e calçados esportivos. Tem uma marca linear em torno da parte da frente do pescoço".
Foi o melhor escritor de sua geração. Era indubitavelmente o romancista mais inteligente do nosso tempo. Era alguém declaradamente dedicado a tentar ser uma pessoa melhor e a usar a literatura, longe, longe, longe da autoajuda, como forma de. Foi o homem que escreveu os livros mais complexos dos últimos anos e, ao mesmo tempo, os revestiu dos conteúdos mais diretos, tristes, humanos, dolorosos e, por que não, lindos. Um escritor à moda antiga; o mais atual de todos eles.
E no dia 12 de setembro ele não pôde mais. Uma dor de 20 anos chegava ao fim. Ficamos mais sozinhos, em um mundo agora menos capaz de nos explicar inclusive essa solidão. Descanse em paz.
Caetano Waldrigues Galindo é professor do curso de Letras na Universidade Federal do Paraná e, neste ano, ministra uma disciplina sobre a obra de David Foster Wallace.
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