Durante as primeiras 48 horas de caça obsessiva a Pokémons, eu tentei cultivar aquela aura magnânima de uma pessoa que está de boa. Já que o meu noivo tinha planejado passar todas as conversas e refeições jogando, o mínimo que eu podia fazer, por educação, era fingir algum nível de interesse.
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Confesso, porém, que me senti testada quando voltei para casa do trabalho e vi a nossa cachorra, uma mestiça de beagle, normalmente muito elétrica, desmaiada no chão da cozinha (“A gente ficou fora um tempão”, Jason admitiu. “Acho que ela não vai querer passear mais por causa de Pokémon”). De novo minha capacidade de ficar de boa falhou quando, indo a uma loja de departamentos, Jason viu um Staryu voando acima da minha cabeça e gritou, “CAIT, CUIDADO!” (“eu achei que eu fosse trombar em alguém”, reclamei. “Não faça isso em público”).
Mas a gota d’água, a última gota mesmo, veio quando estávamos descendo a rua, de carro, aproveitando o trânsito mais leve da manhã. “Meu bem, será que” – disse Jason, virando o volante de repente – “será que dá para você, assim, rapidinho, eu precisava que você – será que você podia capturar esse Doduo para mim?”
Pokémon Go, ao que tudo indica, é o fenômeno digital mais importante de 2016. E eu detestei. Eu detestei Pokémon Go com toda a frustração fútil de quem vê uma nova moda chegando e sabe, sem dúvida, que será atropelada por ela. Eu detestei o quanto esse jogo dá pau, o quanto os servidores caem e os erros do GPS que atormentaram minhas breves horas tentando jogá-lo. Detestei a nostalgia comercial requentada do negócio todo de Pokémon. Detestei a falta de missão, a narrativa inexistente, o despropósito deliberado do jogo: “Por quê? Qual o sentido?” eu exigi que Jason respondesse, que só pode me oferecer um “porque temos que pegar”. Besta.
Mas, mais do que tudo, eu detestei essa singularidade autodeclarada que o Pokémon Go e seu criador, a Niantic, usam como se fosse uma coroa de louros: O jogo, diferente de todos os outros jogos, encoraja os jogadores a saírem para ver o mundo, encontrar outras pessoas e fazer e ver coisas “reais”.
Tudo bem, meu noivo chegou a conversar com um menino da vizinhança quando eles batalharam no “ginásio” que fica na nossa rua. Mas não venham me dizer que o Pokémon Go vai “tirar os jogadores da mesmice” ou “levá-los a lugares desconhecidos” quando estivermos vagando entre as prateleiras de um Safeway, com ele uns seis metros atrás de mim só porque achou ter visto um Sandshrew no outro corredor.
Universo alternativo ilusório
O principal truque do Pokémon Go – e sua grande “inovação”, ainda que suas proporções tenham sido exageradas pelos seus criadores – é a ilusão da realidade ampliada, a ideia de que os lugares e os personagens do mundo de Pokémon estão virtualmente mapeados, sobrepostos ao nosso mundo. Abrir o jogo é um convite para um universo alternativo fantástico, onde criaturas mágicas rondam o seu caminho para o trabalho e a sua paisagem cotidiana está salpicada de lugares futuristas. Você só precisa olhar para o seu celular, constantemente, para participar disso tudo.
Vivenciar o mundo desse jeito, pelo visto, é muito mais interessante do que vivenciá-lo como ele é. Os jogadores relatam fazer longas caminhadas, tomando rumos que levam a lugares aonde não costumam ir. O New Statesman elogiou o Pokémon Go por ter conseguido tirar as crianças de casa numa era em que elas passam muito tempo enfurnadas.
Alguns bares e cafés, que por acaso estão localizados perto de “ginásios” e PokéStops, têm desfrutado de um aumento recente no público. Vários amigos meus já se aventuraram até esses novos Poké-centros e acabaram conhecendo gente para conversar e fazer novas Poké-amizades.
Gamificação de tarefas básicas
Tudo isso é muito bom e bacana, claro, mas todo o hype passa por cima de algo que me incomoda um pouco: Com um aplicativo como o Pokémon Go, acabamos essencialmente submetendo à ludificação tarefas tão básicas quanto sair de casa, falar com estranhos e visitar monumentos nacionais – todas elas atividades que por muito tempo realizamos por conta de seus próprios méritos. Mas agora tudo precisa ser ampliado digitalmente. O valor inerente não existe.
O mesmo pode ser dito de todos os tipos de “envolvimentos” alardeados pelos criadores do Pokémon Go. Se você já visitou um PokéStop local, você deve saber que – ao contrário do que dizem – a maioria dos jogadores não está fazendo amigos ou vendo algo de novo na paisagem: eles estão apertando os olhos para ver melhor suas telas, ignorando-se mutuamente, na esperança de encontrar aquele raro espécime de Pikachu.
Vantagem zero
Em muitos casos, essa concentração parece vir às custas de outros tipos de percepção social. Os jogadores de Pokémon Go já acabaram indo parar dentro de embaixadas, delegacias, cemitérios – e até mesmo no meio da rua. E muitos dos donos de bares e restaurantes que flagraram um aumento no movimento não observaram com isso nenhum aumento na interação entre essas pessoas. Alguns jogadores ficam só sentados na calçada, descendo o dedo nas telas dos celulares, sem nem se darem ao trabalho de entrar.
O dono de um bar local disse ao meu colega do Washington Post, Fritz Hahn, que ele reconhece estar perto de uma PokéStop, mas não tem certeza se isso tem trazido novos clientes. Seu bar está cheio de pessoas que se ignoram mutuamente para ficarem em seus celulares – apesar que hoje em dia, segundo ele, essa é a norma mesmo.
Dado tudo isso, parece injusto, até mesmo desonesto, fingir que jogar Pokémon Go tem algum tipo de superioridade social em relação a quem fica vidrado no Xbox no quarto. Pelo menos nesse caso a fantasia está amarrada a um só lugar, em vez se sobrepor continuamente aos objetos físicos (e noivas constrangidas) no mundo ao seu redor. Além disso, dá para interagir de fato com outros jogadores, como ocorre, por exemplo, em alguns RPGs online famosos. E isso já é mais do que dá para dizer de todo mundo de terno e gravata que saem escondidos para caçar Pokémons na hora da pausa para o almoço.
Tecnologia inexplorada
Só para deixar claro, eu acho que a realidade ampliada é uma tecnologia fascinante e profundamente legal. Suspeito que ela resultará em coisas fascinantes e muito legais, desde visões ampliadas do passado distante até técnicas médicas de ponta até jogos imersivos capazes de engajar-nos com algo que vá além de lembranças requentadas da infância. Esperamos que os melhores usos da realidade ampliada nos poderão nos levar a ampliar nossa compreensão dos ambientes na vida real, tornando visíveis – como escreveu Ian Bogost, para o The Atlantic – possibilidades “anteriormente não vistas”. O que Pokémon Go faz não vai muito além de distrair o usuário em relação aos ambientes físicos aos quais ele nos atrai: a única coisa “ampliada” aqui é o valor de mercado da Niantic e da Nintendo.
Depois do incidente do Doduo, Jason e eu passamos por uns 20 minutos mais ou menos de silêncio, enquanto ele ligava o Spotify e pigarreava algumas vezes. Por fim, perguntou se minha raiva passaria se ele prometesse não jogar mais Pokémon Go enquanto dirige.
“Não”, respondi. “Minha raiva só vai passar se você parar de jogar Pokémon, ponto”.
Ele continua jogando, eu continuo com raiva. E assim persistimos com esse impasse.
Caitlin Dewey é a crítica de cultura digital do Washington Post. Sigam-na no Twitter, @caitlindewey ou assinem sua newsletter sobre todo tipo de coisa que tem a ver com a internet.
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