Poucas obras de literatura serviram tão bem a uma compreensão de um universo desconhecido (ignorado, negligenciado, como preferirem) como o primeiro romance de Paulo Lins, Cidade de Deus. Publicado em 1997, o livro seria automaticamente rotulado como literatura marginal e teria permanecido em um nicho muito específico Lins, negro e ex-morador da Cidade de Deus, oferecia, afinal, um olhar de dentro da comunidade , se não fosse a qualidade literária do material e o apoio do crítico Roberto Schwarz, cuja influência intelectual alçou a obra a um patamar nacional.
Adaptado para o cinema por Fernando Meirelles cinco anos depois, Cidade de Deus se tornou um fenômeno mundial e fez o Brasil enxergar a desigualdade social em toda a sua complexidade, mas não trouxe resultados efetivos. "O que eu queria mesmo, que era investimento em educação e saúde, não aconteceu", lamenta o escritor, que esteve em Curitiba na semana passada para a Semana Literária & Feira do Livro Sesc, em uma entrevista à Gazeta do Povo, em que falou sobre a repercussão de sua principal obra 15 anos depois.
Cidade de Deus abriu os olhos do país para um Brasil até então ignorado?
Acho. Pra população da favela, diminuiu um pouco o preconceito e houve um crescimento em vários níveis das ações sociais, tanto em cultura como em recursos humanos. Houve uma inserção cultural desse universo na música e no cinema. Mas o que eu queria mesmo, que era investimento em educação e saúde, não aconteceu. Houve mais investimento por iniciativa privada do que pública. E eu continuo não vendo um projeto político eficaz de educação no Brasil.
Quinze anos após a publicação do livro, o que mudou na Cidade de Deus? Acha que essas implementações de que o senhor falou alteraram a realidade do lugar?
Não mudou muita coisa. O IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] da Cidade de Deus continua baixíssimo e o professor continua sacrificado. Todo mundo sabe e fala disso, mas ninguém faz nada. Fala-se muito em desenvolvimento econômico, mas o primeiro mundo não é isso. Primeiro mundo é desenvolvimento humano, coisa para a qual nem a sociedade nem o governo ligam. O que eles querem é que a pobreza fique longe, que a periferia continue periferia. É assim no Brasil todo. Não existe paz armada no Rio. A presença da polícia na favela, por si só, já é uma violência. As coisas só vão mudar quando houver uma política de educação forte.
Embora já tivesse publicado um livro de poesia, Cidade de Deus foi seu primeiro romance. Como você avalia sua estrondosa estreia no gênero?
Acho que foi só uma coincidência com a época. Têm autores que lançam dez livros e só depois fazem sucesso. O Cidade de Deus veio no embalo do momento político, e chocou pelo tema. Mas eu não descobri nenhum mundo novo. Tudo o que eu escrevi ali saía nos jornais todos os dias. O diferencial foi a arte. O livro fez sucesso porque foi artisticamente bem feito. E, claro, ele ganhou aquela crítica elogiosa do Roberto Schwarz na Folha de S. Paulo, um dos mais respeitados intelectuais brasileiros. Aquilo foi como entrar em campo com 11 Pelés no time.
O filme do Fernando Meirelles deu uma maior projeção ao livro. Como você avalia a repercussão depois disso?
Não foi nem o filme, foi a indicação para o Oscar que ele teve. Por causa disso ele tá hoje na China, na Estônia, em tudo quanto é lugar. Mas agora o livro continua vendendo por causa de vestibulares. Todo ano ele é indicado para vários.
Aí entra a parte sociológica do livro. Até hoje ele rende muitos estudos, tanto pra área de literatura quanto pra área de sociologia e história. Ele foi feito na academia afinal, a partir de uma pesquisa literária na área de antropologia da Unicamp e da UERJ. Na época, os estudos sobre esse universo estavam começando. Não se podia falar muito sobre a favela, e o pessoal da esquerda se preocupava mais com a liberdade de expressão, para poder falar desses problemas. Assim que o Brasil pôde falar e a universidade pôde trabalhar, a realidade veio à tona. A ciência precisa de um tempo de maturação, mas a imprensa já estava tratando do assunto. Tanto que a maioria dos elementos do meu livro foi inspirado em notícias de jornal.
Você disse em uma entrevista que a arte não muda as pessoas. Acha que o seu livro não tem poder de mudança?
A arte só desenvolve o ser humano, a razão e o pensamento. Mas nunca houve uma arte que mudasse o mundo, as sociedades. Só o que muda o mundo é a guerra, a disputa política, a porrada, o sangue. É o que acontece no Brasil, sempre foi assim. A arte serve para desenvolvimento espiritual. O que mudou na Cidade de Deus foi que a polícia chegou lá, meteu bala em um monte de gente e instalou uma UPP.
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