Londrina - Relações muito distintas com o divino movem dois dos principais espetáculos estrangeiros apresentados no Festival Internacional de Teatro de Londrina, o Filo (confira o serviço completo), neste último fim de semana. Por um lado, a crítica à Igreja inserida na tradição cristã, feita pela coreógrafa espanhola Marta Carrasco, em Dies Irae. Outro viés faz com que o turco Ziya Azazi transforme em performance uma dança sufi mística, entendida como uma forma de conexão com Deus em sua cultura. Dervish, palavra que nomeia o tranbalho, em tradução literal significa "embriagado pelo amor de Deus".
A Concha Acústica, belo espaço ao ar livre no Centro de Londrina, recebeu o bailarino turco e suas muitas saias, usadas durante a dança que se constitui primordialmente de movimentos giratórios.
Durante quase uma hora, em dois solos ("Azab" e "Dervish in Progress"), Azazi rodopia. Ao som de uma trilha que principia robotizada como o gestual dele, de ângulos retos e se converte em uma versão mais moderna da música étnica, seus movimentos se arredondam e experimentam diversos eixos e graus de curvatura corporal, desde cambalhotas no chão até o giro em torno de si.
A energia de cada ação impulsiona a próxima e as saias solitárias ou sobrepostas criam uma aerodinâmica que ajuda o corpo a girar. "Repetindo os movimentos várias vezes, numa atitude de concentração física e mental, chegamos ao êxtase", explicou Azazi.
Essa espécie de transe, plástico e hipnótico para quem vê, o aproxima do estado de êxtase que a dança sufi originalmente persegue, dentro de uma corrente filosófica que crê em uma relação mais direta com Deus, não por palavras e leituras, mas através docorpo em movimento.
Enquanto gira, Azazi faz uma imersão em si mesmo, tanto pela concentração e consciência corporal exigidas, como porque é ele o centro do círculo que desenha no espaço. Mas há de se considerar que sua dança se revela diante do público fora do contexto sagrado ou filosófico.
Torna-se um número performático, infiltrado por outros saberes da dança contemporânea, belo em suas cores e ondulações. Sem perder o equilíbrio, desafia a gravidade, que demora a se impor sobre a saia rubra atirada pelo artista ao alto. Lá se mantém por longos segundos, solta no ar, e ainda rodopiante, como uma manifestação do incompreensível.
Missa fúnebre
De início, a postura de súplica por misericórdia divina domina a missa fúnebre do Juízo Final, tal como criada por Marta Carrasco, uma das mais esperadas artistas desta edição do Filo por seu trabalho com o teatro-dança, no espetáculo Dies Irae.
Uma imagem sobressai: a do aglomerado humano que se arrasta, se debate e implora perante um ser todo poderoso. Por vezes, uma mulher se destaca no impulso de alcançar o divino, sem sucesso. A solução cênica para seus fracassos, ora é um vestido de tecido elástico, ora os longos fios de cabelos feitos de rédeas que a prendem ao grupo ao qual pertence, por mais que avance. Sua natureza humana é inescapável. Só lhe cabe uma atitude de escárnio e critica, caminho que as mulheres em cena (atrizes e bailarinas) tomarão.
As imagens se forjam de cores vibrantes, de movimentos individuais e coletivos evocando a ira, o caos, a fé e o pecado, sob o peso da música inacabada que Mozart compôs a partir de um hino em latim do século 13 e que batizou a montagem. O conjunto confere gravidade e grandiloquência às cenas, apresentadas no Teatro Ouro Verde, o principal de Londrina.
Quanto mais investe no ritual, na sinestesia, nessas imagens e movimentos poetizados, mais visualmente impactante e perto da sublimação o espetáculo se mostra. Os dardos de Carrasco, porém, miram na verdade a instância humana que se interpõe no caminho espiritual: a Igreja. Ataca padres, papas e demais representantes, alude à homossexualidade e à pedofilia. Expõe o discurso de Santo Agostinho que, historicamete, rebaixou a mulher e teria deflagrado o ódio à figura feminina, e crucifica em cena, em vez de um Cristo, uma mulher.
O que de início parecia se encaminhar pelo desespero existencial, atingindo uma grandiosidade arrebatadora, se revela um discurso condenatório de toda a estrutura religiosa, como se ela ainda tivesse o mesmo peso que teve durante a Idade Média sobre cada cabeça humana.
* A repórter viajou a convite do Festival Internacional de Teatro de Londrina.
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