A readaptação de um ex-presidiário à sociedade é algo tão raro no Brasil que, quando acontece, vira notícia. Essa é a história de vida de Luiz Alberto Mendes, que, depois de 31 anos e dez meses na prisão, condenado a uma pena de 74 anos por homicídio e assalto a mão armada, entre outros crimes, tornou-se escritor. Em agosto, Às Cegas, seu terceiro livro publicado, concorreu ao Prê-mio Jabuti na categoria biografia (perdeu para Ruy Castro e seu Carmen).
O autor chamou atenção ainda nos tempos de cárcere, em 2001, quando venceu o concurso literário interno do Complexo do Carandiru, em São Paulo, com o conto "Cela-forte". Drauzio Varella, Arnaldo Antunes e Fernando Bonassi eram os jurados. Pouco depois, o Professor, como Mendes era conhecido na prisão, mostrou os esboços de suas memórias para Bonassi, que logo viu no texto uma "obra acabada". Sua escrita pontuada por frases curtas e linguajar das ruas constrói sua autobiografia, em processo que já foi descrito como "arqueologia da memória".
Retomando suas relações com o pai, que batia nele e o chamava de débil mental, e a mãe, que o considerava santo, Mendes narra o envolvimento com o crime, as relações amorosas, as amizades e as sucessivas passagens por reformatórios e prisões, até a descoberta da literatura. O livro publicado chamou atenção e o detento logo virou colunista da Revista Trip.
Hoje, em liberdade, escreve contos, crônicas, resenhas, peças de teatro e está na vice-presidência da ONG Instituto de Defesa dos Direitos Humanos. Esteve em Curitiba na semana passada para servir de consultor nos ensaios do longa-metragem Estômago, que começa a ser rodado na próxima semana, com direção de Marcos Jorge. A reportagem do Caderno G conversou com o escritor na desativada Prisão Provisória do Ahú, que servirá de locação para o longa.
"Eles me chamaram porque não sabiam nada da vida na prisão. Então eu ajudei a construir os personagens", conta Mendes, procurado ainda na fase de escrita do roteiro. Uma intervenção sua, por exemplo, mudou o nome de um personagem, erroneamente chamado de Talarico, o que, como Mendes descobriu na prisão, designava o homem que dormia com a mulher dos outros.
Também esclareceu dúvidas dos atores. "Tem um personagem que é meio louco no filme e me perguntaram como é o maluco da cadeia. Eu disse que é como o maluco da rua. Então, o ator sugeriu um tique para esse cara, e aí eu falei que era aquilo mesmo, para ir tocando", relembra.
No entanto, sua participação não representa a busca de realismo, mas de uma "ficção verdadeira". "Todos os grandes pintores, os que fazem abstracionismo, antes estudaram os clássicos, suas técnicas, as texturas, as cores, e a partir daí criam um novo estilo, ou seguem um outro estilo. A música é a mesma coisa, a escrita também, e é assim no caso desse filme. É preciso conhecer o real para poder fazer uma ficção dele. Não se faz fantasia de nada, senão ela não procede e é o que acontece nos fil-mes de prisão. Aí fica falso em vez de ser fantasioso", explica Mendes.
A história do filme é sobre Raimundo Nonato, um forasteiro que muda de cidade em busca de uma vida melhor. Forçado pelas circunstâncias, ele descobrirá seu talento para a culinária. Ela será sua salvação tanto em liberdade quanto na prisão. O papel coube ao ator João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus.
Mendes aproveitou a chance para falar de sua peça, A Passagem, ainda inédita nos palcos. O tema são os detentos e a relação deles com o sistema prisional e a sociedade. "Em São Paulo, 70% dos presidiários são reincidentes. Quando o cara sai, ninguém oferece nada para ele. Mais de 50% das pessoas nas prisões não recebem visita, o que sugere que eles não têm família. Quando são libertados, eles recebem apenas o chute no pé. Sem família, sem teto, sem ajuda, quanto tempo eles podem durar? Há muitos mendigos que são ex-presidiários. A peça que estou escrevendo é sobre isso", conta o escritor, que atualmente está lendo Quando Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom, e está fascinado com Fama e Anonimato, de Gay Talese.
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