O Festival de Cannes tem sido a principal vitrine para filmes que não conseguem um lugar no concorrido circuito de cinema internacional. Em outros casos, pode ser também a única.
Proibido de filmar em seu país de origem há pelo menos três anos sob acusação de apoiar os separatistas curdos, o diretor iraniano Bahman Ghobadi promoveu na noite desta quinta (14), na mostra Un Certain Regard, a exibição de seu mais recente longa-metragem, No One Knows About Persian Cats. O título é uma referência à lei iraniana que impede que gatos e cães sejam levados para fora de casa.
Filmado de forma clandestina e baseado em fatos reais, o longa, no entanto, acompanha as dificuldades que um casal de jovens músicos de Teerã enfrenta para montar e promover sua banda de indie rock. São adolescentes bem-nascidos, familiarizados com a cultura pop internacional, mas que, assim como os gatos, não podem desfrutá-la a portas abertas. Precisam de autorização do governo para gravar suas músicas em estúdio, para tocar em festinhas pela cidade e são forçados a recorrer ao mercado negro para tentar conseguir passaporte e visto para tocar em festivais europeus do gênero.
As aventuras de Askan e Négar - ambos músicos, atores não-profissionais - para perseguir seu sonho são diretamente proporcionais ao empenho que dedicam para superá-las. Com a ajuda de um amigo espertalhão, apaixonado por cinema americano e que ganha a vida vendendo DVDs piratas no mercado ilegal, o casal percorre o underground musical da capital iraniana em busca de parceiros para a empreitada.
Para quem conhece o Irã apenas pelo noticiário político e de guerras, o cenário é surpreendente: fãs de artistas como Strokes, Arctic Monkeys, Sigur Rós e Nirvana, cortes de cabelo e visual descolados, as bandas locais usam todos os artifícios para levar sua arte adiante. A banda de heavy metal ensaia numa fazenda, dividindo espaço com vacas e tratores; o cantor folk mostra suas canções para um grupo de crianças carentes em um abrigo na cidade; os emos esperam o vizinho sair de casa para começarem a tocar, caso contrário ele chama a polícia; enquanto a gangue de rappers escolhe uma construção desativada para cantar suas músicas de protesto olhando Teerã de cima para baixo. A temática das músicas é sempre semelhante: sonhos de uma vida melhor, frustração, sentimento de impotência e conflitos com o governo e os pais.
"Quando o Ministério da Cultura do meu país disse às pessoas que eu era separatista, estava enganado. Sou iraniano. Fiquei muito triste e oprimido nessa época sem poder filmar", declarou ao público de Cannes durante a sessão o diretor iraniano. Ghobadi é também namorado da jornalista americana Roxana Saberi, que estava presa até esta semana no Irã acusada de espionagem.
A decisão de enfrentar a proibição e mesmo assim produzir No One Knows, incluindo duas prisões durante as gravações, só foi possível, diz ele, graças à música e aos jovens que conheceu durante as filmagens. "Essas pessoas me ensinaram a viver nesse mundo e posso dizer que, hoje, não sou mais o mesmo que eu era meses atrás." As saídas da prisão nas ocasiões, vale mencionar, foram trocadas com os policiais por DVDs dos filmes antigos do diretor, entre eles os premiados Tempo de Embebedar Cavalos e Tartarugas Podem Voar.
Enquanto isso, na China...
Drama semelhante vive o diretor Lou Ye, de Spring Fever, projetado pela primeira vez na quarta-feira como parte da mostra competitiva de Cannes. O filme aborda, sem reservas, um dos maiores tabus ainda de pé na sociedade chinesa: a homossexualidade. Também já conhecido do público de Cannes, Lou foi banido pelo governo chinês de filmar no país desde o lançamento de seu "Summer palace", longa-metragem ambientado no cenário político conturbado que culminou com o massacre da Praça da Paz Celestial.
Seu mais recente longa foi gravado às sombras, na cidade de Nanjing, antiga capital do país. Conta a história de um detetive particular, que é contratado pela mulher para investigar a relação homossexual do marido e acaba se envolvendo num triângulo amoroso com o casal gay. Protagonizado por jovens atores desconhecidos, o filme mostra também que, apesar das severas restrições, o país não deixa de ter seus "inferninhos" e pessoas que encaram corajosamente as consequências de suas opções de vida.
Considerada como uma doença mental na China e vítima do preconceito também por parte da ala feminina - "Se fosse com uma mulher tudo bem, mas com um garoto não" protesta a traída - a homossexualidade é tratada no filme como um caso de amor. "Não filmei muita homossexualidade. Mostrei relacionamentos complexos de todos os tipos. Mostrei sentimentos, mostrei amor", defende Lou.
Respondendo a perguntas dos jornalistas sobre as possíveis retaliações por ter desafiado a proibição de filmar no país, o diretor comentou: "espero que nada aconteça quando eu retornar à China. Sou apenas um diretor que fez um filme", disse ele. E repetiu o mantra que costuma dizer a si próprio nessas situações: "não tenha medo do cinema".
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