O comentário não poderia ser mais preconceituoso. Em uma das inúmeras filas que o freqüentador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tem de enfrentar para conseguir assistir aos títulos mais concorridos, um cinéfilo disparou, em alto e bom som, que neste ano havia optado por ver apenas "filmes produzidos em países com água potável". Muitos ao seu redor riram e outros, entre pasmos e indignados, fizeram de conta que não era com eles.
O teor politicamente incorreto contido no comentário do rapaz, que fez juramento público de não estar disposto a encarar cinematografias mais periféricas, tem tudo a ver com o espírito da mostra, que sempre primou por abrir espaço tanto ao obscuro quanto para o consagrado. Cabe ao público decidir o que deseja ver: o último vencedor da Palma de Ouro ou uma produção africana que jamais será lançada nos cinemas brasileiros.
Entre os 420 filmes selecionados pela Mostra em 2006, há um pouco de tudo que foi realizado no último par de anos ao redor do mundo. Como sempre, a organização do evento foi buscar o que de melhor (ou mais comentado) foi exibido no circuito dos grandes festivais internacionais, como Cannes (França), Berlim (Alemanha), Veneza (Itália) e Sundance (EUA), entre outros. Nem sempre são os melhores filmes, mas vamos a eles.
Da mostra francesa, o evento paulistano trouxe os principais laureados. A decepção ficou por conta do correto, porém convencional The Wind that Shakes the Barley, drama político de Ken Loach sobre a dramática resistência irlandesa na década de 20 contra o domínio da coroa britânica em seu território. O bom elenco, encabeçado pelo talentoso Cillian Murphy (Batman Begins), está a serviço de uma história bem contada e por vezes comovente, mas que, para quem conhece o engajamento da obra do diretor de Terra e Liberdade, não surpreende. É mais do mesmo.
A Palma de Ouro estaria em melhores mãos caso o júri tivesse optado por dar o prêmio máximo ao "segundo colocado", o excepcional Flandres, mais um grande filme do francês Bruno Dumont (A Vida de Jesus e A Humanidade). Difícil como todos os filmes do diretor, mas tão ou mais contundente e perturbador, o longa, vencedor do Grande Prêmio do Júri, conta a história de um grupo de jovens fazendeiros do interior da França que se alistam no Exército para combater rebeldes muçulmanos no norte da África.
Outros premiados em Cannes, os muito bons Volver (melhor roteiro e conjunto de atrizes), do espanhol Pedro Almodóvar, e Babel (melhor direção), do mexicano Alejandro Iñarritu, foram dois dos títulos mais disputados da mostra.
Sundance
Grande Prêmio do Júri, equivalente a melhor filme, do último Festival de Sundance, Meus 15 Anos é uma das agradáveis surpresas do festival paulistano. Dirigido por Richard Glatzer e Wash Wesmorland, o filme parte de uma tradição familiar a todos que vivem em países latinos, as festas de 15 anos de garotas, para traçar um rico painel da comunidade hispânica de Los Angeles.
A trama gira em torno de Magdalena (Emily Rios) que, às vésperas de seu 15.º aniversário, se descobre grávida do namorado sem que eles tenham consumado o ato sexual. Filha de um pastor pentecostal, ela não consegue convencer o pai de que, apesar de seu estado interessante, continua virgem. Acaba sendo expulsa de casa, mudando para casa de um tio-bisavô, onde já vive outra ovelha desgarrada da família, seu primo Carlos (Jessé García), um jovem homossexual, também colocado para fora de casa, que mantém um caso com um casal de vizinhos brancos.
Fazendo uma delicada porém contundente discussão sobre as diferenças comportamentais entre gerações de imigrantes mexicanos, o processo de aculturação que sofrem e o surgimento de uma identidade híbrida, ainda bastante volátil, é um tema urgente. Especialmente em tempos nos quais o governo norte-americano parece disposto a endurecer ainda mais sua política contra a imigração ilegal com construção de muros ao longo de toda fronteira entre os EUA e o México.