Romance
Vida Provisórias
Edney Silvestre. Editora Intrínseca, 240 págs., R$ 29,90 (impresso) e R$ 19,90 (e-book).
Dois brasileiros no exílio em épocas distintas. Por diferentes motivos, forçados a deixar tudo para trás, não exatamente em busca de melhores condições de vida. Partem por razões mais urgentes: se ficarem, o bicho pega, mata e come. Sem clemência.
Vidas Provisórias, terceiro romance do jornalista Edney Silvestre, conta, em paralelo, as histórias de Paulo e Barbara. Ele é preso e torturado pelo regime militar no início da década de 1970, sob a acusação de ter envolvimento com o sequestro de um embaixador alemão. Para não morrer, escapa, sob outra identidade, primeiro para o Chile, depois, com a queda e morte de Salvador Allende em 73, segue para a Suécia. O irônico é que, muito provavelmente, tenha sido preso por engano.
O tempo de Barbara é outro: vinte anos mais tarde, logo depois da eleição de Fernando Collor de Mello, no primeiro pleito direto à Presidência da República desde o fim da ditadura. Com a morte violenta do pai, supostamente envolvido em um esquema de tráfico de drogas, não tem mais como permanecer no Brasil. Ela se instala nos Estados Unidos como imigrante ilegal, primeiro na região de Boston, depois na de Nova York. Sobrevive trabalhando incansavelmente como faxineira e manicure. E acaba descobrindo o complexo universo paralelo em que vive a comunidade brasileira na terra do Tio Sam.
Em comum com Paulo, Barbara tem o desejo de um dia voltar à pátria amada, porém ingrata. Mas nenhum dos dois pode.
Obra autônoma
Quem leu Se Eu Fechar os Olhos Agora (2009), ótimo primeiro romance de Silvestre, vencedor dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, vai perceber, após algumas dezenas de páginas de Vidas Provisórias , que Paulo é um dos meninos protagonistas da obra de estreia do jornalista, embora o livro seja uma história autônoma. No desfecho do original, o garoto, após ter ajudado a desvendar um misterioso crime envolvendo ricos e poderosos de sua cidade, é forçado, assim como seu melhor amigo, a deixar o interior de Minas Gerais com o pai e o irmão, na primeira das muitas fugas que será forçado a empreender na vida.
"Eu continuava pensando no Paulo e no destino dele mesmo depois de ter entregado o texto final de Se Eu Fechar os Olhos Agora para a Luciana Villas-Boas, então dirigindo a Editora Record. Não entendia por quê. E já estava compondo meu segundo romance, A Felicidade É Fácil, passado no início dos anos 1990", conta Silvestre, em entrevista concedida por e-mail, à reportagem da Gazeta do Povo.
Paulo não está em A Felicidade É Fácil, mas seu irmão, Antonio, sim. "No meio da criação desse segundo livro, ressurgiu o personagem de Antonio, que se revelava ligado às forças da repressão." São essas mesmas forças que, 20 anos antes, em Vidas Provisórias, obrigam Paulo a fugir para o exílio.
"Durante um comício das Diretas Já [no segundo romance de Silvestre], Antonio se perguntava onde estaria Paulo. E eu percebi, pasmo, que sabia onde, como, com quem tinha se casado, quem eram seus filhos etc. Comecei ali mesmo a compor Vidas Provisórias. Quando entreguei o texto de A Felicidade É Fácil, já tinha escrito inúmeras anotações e um capítulo inteiro em que Paulo era o personagem principal."
Ditadura
Silvestre, apresentador do programa Globo News Literatura e repórter especial da Globo, explica sua opção por falar dos anos de chumbo. "O golpe militar de 1964 nos afetou a todos, esquerdistas, direitistas, apolíticos, o que quer que alguém fosse. Tive amigos presos, tive amigos e conhecidos torturados, tive amigos exilados. Muitos voltaram. Outros ficaram pelo caminho. Perdemos, nós, no Brasil, gente preciosa, que não resistiu a tanta dor. Teriam feito muita diferença, se estivessem vivos. Não eram pessoas famosas. Pensava neles com frequência. Conforme contava a história de Paulo, em Vidas Provisórias, ia me lembrando de cada um. Gosto de pensar que, através do meu romance, eles de alguma forma, estão novamente por aqui."
Imigrantes
A outra trama de Vidas Provisórias, que se entrelaça com a de Paulo, também retrata a trajetória de uma brasileira de certa forma enjeitada por uma pátria nada gentil. "Me dá muita tristeza perceber que não fomos capazes de criar o país com que sonhávamos na juventude. Viajo muito pelo Brasil, muito além de São Paulo, Rio, das capitais. Há tanta miséria, tanta fome, tanta violência contra os desvalidos. Não é justo. Não sei se jamais seremos justos. Não sei se nossa elite, política, econômica, cultural, realmente se preocupa com a dona Maria que não sabe ler, tal como seus filhos, tal como seu marido se ainda estiver vivo e não tem comida suficiente para nenhum deles."
Por muitos anos correspondente da Rede Globo em Nova York, onde cobriu os ataques do 11 de Setembro, Silvestre viu bastante de perto a realidade dos imigrantes brasileiros nos EUA. A história de Barbara coincide com esse período.
"O Plano Collor fez explodir a diáspora brasileira. Para sobreviver, era preciso sair do Brasil. Quando cheguei a Nova York, em 1991, as Barbaras estavam lá, em Nova York, como estão, até hoje. Ali, como em Londres, Dublin, em Portugal, na Espanha, no Japão, por toda parte. Tal como Barbara aos EUA, elas chegaram de maneira ilegal, não podem sair, não aprenderam suficientemente bem a língua do país onde vivem, não têm maiores qualificações, não têm mais referências no Brasil, não têm para quem nem para onde voltar. Não são mais brasileiras, não se tornaram americanas. Não são nada. Não pertencem a nada."
Vidas Provisórias, primeiro livro de Silvestre lançado pela editora Intrínseca, tem um projeto gráfico inventivo, com diagramações e cores de letras diferentes para as narrativas dos dois personagens: Paulo, em preto, e Barbara, com letras azuis. "Foi uma criação do estúdio de design warrakloureiro, que ajuda enormemente a compreender a estrutura complexa da trama, que reúne tantos personagens, de épocas diferentes, em locais tão distintos quanto Iraque, França, Suécia, EUA."
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