Para entender melhor a crise política no Brasil, preste atenção, mas muita atenção mesmo, em "Memória do Saqueio", documentário do argentino Fernando Solanas sobre a crise argentina. Não, não se iluda caso alguém lhe diga que se trata de um apelativo e melodramático panfleto da esquerda latino-americana, que teria ficado viúva diante de tantos planos liberais a pipocarem pelo continente. Não. É, sim, um filme sobre o impacto real de muitas escolhas eleitorais frustrantes, que guardam incríveis semelhanças com o que se vê no Brasil de hoje e, mais amplamente, na América Latina de sempre.
O filme chega aos cinemas brasileiros nesta sexta-feira (16) após conquistar 20 prêmios internacionais. Foi bem recebido pela crítica européia, mas muitas vezes tachado de panfletário na própria América Latina. Solanas, de 69 anos, conta que começou a fazer "Memória" em dezembro de 2001, a fim de realizar uma reflexão histórica sobre seu país após o fim do governo do presidente Fernando de La Rúa, os problemas financeiros e a "grande mancha de fome que cobriu a Argentina".
O filme é banal, simples, direto, pra ninguém ficar em dúvida sobre o assunto principal: a "mafiocracia", nas palavras do diretor, e sua relação - esta, sim, carnal - com a morte de milhares de pessoas. O próprio Solanas explica:
- É o réquiem, por mostrar os resultados, de um genocídio social. Quando morrem mais de 35 mil pessoas por ano por desnutrição, mais do que em guerras como a das Malvinas, é um genocídio. Na Argentina morreram mais de 100 mil pessoas em apenas um dos anos de crise - diz o diretor, consagrado por filmes como "Sur" (Sul), "A nuvem", "Tango, o exílio de Gardel" e o pai de todos os documentários políticos latino-americanos, "La hora de los hornos" (1968), que alimentou a inspiração de muitos de nossos cineastas, com Glauber Rocha e Nélson Pereira dos Santos.
E o que, objetivamente, este filme tem a ver com a realidade brasileira? Ora, muito simples, diz Solanas. Sob a batuta do Fundo Monetário Internacional (FMI), nos anos 90 toda a América Latina renegociou (para muitos, desfavoravelmente) suas dívidas, privatizou o que pôde, achou a fórmula mágica de controlar a inflação, mas não houve transferência de benefícios para as camadas mais pobres. Ou seja, em geral, o eleitor levou gato por lebre e paga a conta até hoje.
- Já é um lugar comum na América Latina o prometer ao eleitorado e não cumprir. E quando os que prometem chegam ao governo, dizem que a situação é tão grave que não se pode mudar. Apesar de muitos militantes, companheiros de toda a vida, dizerem para eles que mudem. No segundo ano de governo começam a chegar os elogios do FMI e a se votar leis contra as quais o governante se colocava antes. Aí, o partido proíbe os antigos militantes de falarem mal. No terceiro ano, estes mesmos militantes percebem que foram enganados e que a bandeira contra a corrupção não é mais empunhada. E a mídia tira a máquina de fazer hambúrgueres e coloca a carne dos governantes que eram supostamente progressistas para fazer os mesmos hambúrgueres - ironiza o diretor, sem fazer uma clara menção ao Brasil.
Nem precisava. Mas, de fato, Solanas alude a Fernando De la Rúa, da União Cívica Radical (UCR), que chegou ao poder com um discurso oposicionista e o deixou fugido, de helicóptero, nas mãos do mesmo Partido Justicialista a que se opunha. Patético.
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