A filosofia é vendável, e tem sido procurada cada vez mais nas livrarias. O reflexo disso aparece claramente no percurso das carreiras filosóficas, que guardam agora a novidade de uma participação maior dos filósofos no espaço público.
O filósofo francês Luc Ferry, por exemplo, transita entre o Ministério da Educação de seu país e as prateleiras das livrarias, com um conceito de filosofia associado à idéia de que, por fim, a filosofia ensina a viver bem. As duas coisas (o conceito de filosofia em questão) e o sucesso de vendas estão associados, e não somente no caso de novas filosofias, construídas para responder a esse tipo de demanda, os clássicos também têm circulado mais, e em mais traduções destinadas ao consumo do leitor comum.
Confesso meu diagnóstico disso sem rodeios: embora a matéria-prima seja resistente, a filosofia pode se incorporar à indústria cultural. Pelo menos se entendemos por indústria cultural as estratégias de transformação da cultura em mercadoria. O preço disso, para quem trabalha diretamente com o estudo da filosofia, é a submissão a um quadro novo de questões, semelhantes àquelas que já surgiram para a música, a literatura, as artes plásticas em geral e para as outras áreas da cultura que já estão incluídas, faz muito tempo, no amplo esquema de circulação de mercadorias que caracteriza o mercado de consumo desse bens.
A primeira dessas questões diz respeito à qualidade dessas mercadorias (as nacionais e as importadas). Agora, autores e leitores se encontram em um novo espaço, aberto pelo sucesso e pela sensibilidade em atender demandas reprimidas do mercado. Isso permite que o leitor, outrora um estudante rigoroso de sua disciplina, cobre a facilidade de consumo do texto: a clareza, às vezes apenas facilitadora; a utilidade prática imediata do texto, acompanhada de vez em quando de certa leviandade; ou, por fim, a defesa não justificada de certas formas de vida e certos interesses com os quais o leitor espontaneamente se identifica. Do lado do autor a tentação é bem maior: a grande circulação dos textos traz reconhecimento e compensação financeira.
Não se trata de dizer, de uma forma apressada, que uma sombra "pop" se estendeu sobre a produção dos textos que têm a filosofia por tema. Basta olhar para as estantes de filosofia das livrarias, no entanto, para ver claramente o que está acontecendo. Há um degradée na qualidade dos títulos e no tratamento da disciplina que atende desde o interesse mais leviano, até a seriedade acadêmica mais sisuda. Por certo, podemos nos perguntar se essa última também não se torna mais uma mercadoria que, como os trajes esporte, pode conviver na mesma vitrine que os trajes sociais.
Porém, uma possível alternativa a tais circunstâncias pode ser encontrada ao lado da formação e da consciência do consumidor. Por certo, o caráter de consumidor é irremediável, mas há algo no consumo que parece desafiar a lógica facilitadora do mercado. A filosofia tem seu estofo na própria idéia de formação, e, sendo assim, continua matéria resistente ao simples consumismo. O que pode acontecer, ao lado dos perigos que ela corre, é, no final das contas a chegada da filosofia num universo de interlocutores maior. Na direção contrária, a filosofia pode começar a se pensar em termos que falam a mesma língua dos seus leitores. Esse encontro, desde Sócrates, sempre foi crítico. Esperemos que possa continuar sendo assim.
* Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná, Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo sob a orientação da professora Marilena Chauí, com uma tese sobre a filosofia de Espinosa.
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