Artigo
"A dança contemporânea não se cansa de convidar"
Gladis Tridapalli, diretora da companhia Entretantas
Público e dança contemporânea? Já perdi algum sono pensando nessa relação e não é por acaso que ultimamente tenho produzido dança, junto aos artistas da Entretantas, a partir dessa questão. Lembro de uma vez, nós, em plena cena, dançando De Maçãs e Cigarros, e uma adolescente desesperada na plateia começou, sem parar, a perguntar em voz alta: "O que isso significa? O que isso significa? O que isso significa?".
Inquietação instalada. O que essa pergunta e desespero nos apresentam? Abismos. O que será que acontece? Será que a dança que a gente produz, por ela mesma, não toca o público? Depois de dançarmos, ainda temos que explicar? Será que o público espera uma narrativa que conte alguma história? Será que o público espera uma dança com passos já conhecidos? Será? Será?
Muitos serás! Mais do que achar soluções ou culpados, o que a gente tem feito é escancarar, sem preconceito ou julgamento, esses estranhamentos e entender que os abismos implicam uma relação entre os artistas que produzem a dança e o público que junto está ali na hora que ela acontece. Não existe abismo só de um lado e nem passividade. E, nesse caso, os abismos são bem-vindos porque justamente eles trazem à tona uma dança que é experimental, que trata de problemáticas que, sim, instauram reflexão, estranhamentos e outros níveis de sensações não só em quem assiste, mas em quem dança também. A dança contemporânea é convite sempre para o público e artistas se desinstalarem e acharem juntos outros lugares onde muitas fronteiras são borradas e/ou subvertidas. Claro: nem todo espetáculo consegue isso, não é sempre que ele afeta a todos e nem é para ser assim. Muitas coisas no mundo não afetam a maioria e nem por isso são menos importantes.
No entanto, a dança contemporânea não se cansa de convidar. Ela vem alargando os convites e, por isso, as aproximações. Coisa que não se dá de um lado só e jamais de maneira tranquilizadora, pois dança contemporânea não é novela das oito nem chá de camomila. Já dá para reconhecer que muitos artistas estão tentando, em seus processos e obras, chegar junto ao público, não para agradar e sim trocar afetos, pensamentos, discussões, sabores e conflitos. E como é gostoso também ver o público que já sacou que ver dança é uma partilha na qual a tessitura de sentidos acontece sempre em relação. Como é bom quando alguém te procura, depois que o trabalho foi apresentado, para trocar uma ideia, compartilhar o que sentiu, perguntar, tomar um bom café discutindo o corpo, a vida, a dança.
Nós, na Entretantas, estamos num momento de criação no qual apostamos em uma dança que pesquisa na rua, que conversa com as pessoas, que quer saber da porteira, do padeiro, da menina da cantina, dos amigos, quer saber sem medo da resposta, nem com a intenção de convencer alguém de como a dança é para ser. Queremos aproximar com uma boa dose de humor, rindo de nós mesmos, das nossas próprias expectativas e também do que esperam da dança. Andamos fazendo dança como um jeito de conviver, de festejar também. E, nesse caso, os abismos nos inspiram porque neles habitam o diferente e o desconhecido.
Na apresentação do grupo de dança israelense Batsheva Ensemble no último dia 7, um casal pouco assíduo a esse tipo de programa se perguntava durante o intervalo: "Mas o que eles querem dizer? O que significa?" Era o rabino Pablo Berman, que interpelava a esposa Perla. "Confesso que fico tentando entender o que estão fazendo", contou à reportagem.
Um espetáculo de dança contemporânea parte muitas vezes de provocações e conceitos que inquietam seus autores, mas raramente existe uma ideia inicial semelhante a "o que queremos transmitir ao público dessa vez?". Do outro lado da quarta parede, a plateia comumente se põe numa caçada feroz por significados que acaba atrapalhando a recepção.
Em seu artigo datado de 1964 Against Interpretation, Susan Sontag já fazia um libelo anti-interpretação, ao defender que o pensamento ocidental está por demais condicionado à busca por sentido, enquanto a arte, para quem faz e quem recebe, precisa respirar livre de amarras.
Existe uma "fome semiotizante" no mundo, define o bailarino Ronie Rodrigues. "Mover o braço para cima não significa necessariamente proteção. Um movimento da perna não evoca um cachorro sarnento...", brinca. Em Swingnificado, seu grupo Entretantas abordou justamente o tema da recepção por parte do público e a angústia por compreensão.
O público que frequentou nesta semana o Festival O Boticário na Dança atesta essa necessidade, mas também um grande interesse por experimentar novas formas de expressão uma dezena experimentou isso literalmente, subindo ao palco para dançar junto com o Batsheva, num momento espetacular de interação e espontaneidade.
Talvez estimulada pelo clima de festival, a plateia brasileira deu um baita carimbo de aceitação para os espetáculos trazidos pelo Boticário neste ano. Produtora do grupo inglês Akram Khan, que se apresentou no dia 5, Bia Oliveira conta que, nas apresentações europeias, existe muitas vezes um período de silêncio entre o término do espetáculo e o início das palmas. "É como se as pessoas não tivessem entendido ou precisassem de tempo para respirar. Mas no Brasil as palmas foram imediatas e explosivas", disse à Gazeta do Povo.
Carinho
Artistas locais ouvidos pela reportagem confirmam um crescimento, na última década, do interesse pela fruição de todo tipo de dança. Por outro lado, desponta o pensamento de que, muitas vezes, falta um olhar mais carinhoso para com o público.
"A gente ainda tem de investir muito para conquistar as pessoas, fazendo coisas consistentes e pensando nelas, o que às vezes não acontece", avalia a diretora do Balé Guaíra, Cintia Napoli. "Não se pode deletar a plateia. Para quem a gente faz nossa arte? De sua parte, o público também precisa se exercitar para assistir e comentar a dança", acredita.
Para que esse espectador seja envolvido por completo e a ansiedade por compreender se torne coisa do passado, ela defende que o pensamento do artista é que precisa ser contemporâneo novo, ousado , seja dançando o que for. "Corpo é pensamento", avisa.
Pela parte das plateias, como na maioria das discussões que se abra no Brasil, acaba-se na urgência por uma revolução educacional. "É difícil falar em recepção sem lembrar do acesso à arte no Brasil", lembra o bailarino Ronie Rodrigues. "Não que o artista não tenha responsabilidade sobre a recepção, mas a dificuldade de compreensão está ligada à educação", defende.
Ele aponta ainda um retrocesso ocorrido em Curitiba nos últimos cinco anos, quando o antigo polo de pesquisa da Casa Hoffmann foi enfraquecido. "Está um espaço abandonado, e ele movia muito a cidade em pleno centro histórico."
As duas questões são apontadas em coro por Cintia: a necessidade de formação de plateia (atividade que o Balé Guaíra vem promovendo com convites para escolas ocuparem suas poltronas aveludadas e com idas à rua e pátios colegiais), e a descontinuidade de políticas públicas, o que acaba interrompendo bons programas.
Oferta
Para muitos artistas da dança, discutir sua arte é complicado. O problema começa na existência de inúmeras vertentes dentro do que é chamado de contemporâneo: trabalhos mais conceituais, outros mais embasados em alguma técnica, ou calcados num virtuosismo.
Mesmo na Nova York das vanguardas, existe uma extrema segmentação do público de dança não clássica, conforme conta a bailarina Andrea Lerner, há 20 anos inserida na cena norte-americana. "Tem a moderna conservadora, as chamadas uptown e a downtown dancing, que é mais contemporânea. Aqui a dança está no MoMA, em outros museus, em diálogo constante com outras artes."
Nem sempre é preciso contar uma história
Uma das maiores tentações do público ao assistir a um espetáculo de dança contemporânea é tentar ligar os pontos e "entender o enredo" do que se está vendo. Assim como se buscam signos nos movimentos dos bailarinos, é grande o desejo por voltar para casa com uma "história parta contar".
Da parte dos artistas, no entanto, é mais comum hoje a rejeição pela narrativa, especialmente nos ramos mais abstratos. "Se quisesse contar histórias, escreveria um livro, não dançaria", teria dito um dos papas da teoria e da prática contemporâneas, Merce Cunningham. "A narrativa pode existir, mas não a clássica. É um outro tipo de construção", defende o bailarino Ronie Rodrigues.
E essas construções existem mesmo, e parecem agradar muito ao público. Algo como o que o grupo inglês Akram Khan apresentou no dia 5 dentro do Festival O Boticário na Dança, no Teatro Guaíra. iTMoi resgata a clássica Sagração da Primavera, coreografia de Vaslav Nijinski para a música de Igor Stravinski que inaugurou a dança moderna em 1913. Paralelamente, insere elementos do texto bíblico, ao relacionar o sacrifício da eleita para dançar até morrer em nome das boas colheitas com o pedido de Deus para que Abraão entregasse Isaque, filho tido só na idade avançada, cuja morte o Eterno poupa no último minuto.
O resultado tem relação com a genética do grupo, cujo fundador une o contemporâneo à dança clássica indiana, o kathak, baseado em contar os mitos indianos, conforme lembra a curadora do festival, Sheila Costa. No Guaíra, a apresentação evocou tons mitológicos, ao mesmo tempo em que movimentos e música podiam lembrar o hip-hop. "O belo transcende o bonitinho", lembra Sheila.
"Ficou bem claro o sacrifício, mas alguns papeis eram confusos", constatou Juliana Roumbedakis, 27 anos, líder do grupo de dança urbana Brainstorm. O próximo trabalho de sua equipe terá direção do mentor do hip-hop local, Octávio Nassur, e partirá da obra do artista plástico Artur Bispo do Rosário. "Às vezes, a gente se influencia pela música ou pelo momento, mas aquilo não deixa de ser uma história. Toda dança tem a preocupação de comunicar", acredita Juliana.
Na edição do Rio de Janeiro, o festival de O Boticário teve o grupo paulista Cisne Negro com Sra. Margareth, trama sobre "um grupo de funcionários presos no porão da casa de uma patroa abusiva", conforme nos conta o programa, numa narrativa que costura As Criadas, de Jean Genet, com a vida e a obra do escritor polonês Bruno Schulz.
Preconceito
Já na cena local, existe um certo preconceito com a linha da dança que se propõe a contar histórias. "Um pouquinho...", avalia Cintia Napoli, diretora do Balé Guaíra. Por outro lado, o braço mais experiente do teatro estadual, o G2, apresentou em 2011 uma surpreendente coreografia que partiu de notícias de jornal e entrelaçou diversas narrativas passadas em Londres, em cenas muito diferentes entre si e com narração em áudio: Blow Elliot Benjamin.
Outros exemplos escapam para o campo do teatro-dança ou da dança-teatro, conceitos permeáveis mais úteis ao criador do que ao espectador.
O que atrai ou afasta você da dança contemporânea? Deixe seu comentário abaixo e participe do debate.
Veja o vídeo do espetáculo Swingnificado Parte 1 :
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