Ao abrir suas portas ao público no dia 12 de junho de 2005, a 51.ª Bienal de Veneza, na Itália, trouxe, juntamente com sua tradição de 110 anos, o fato de ser a primeira edição com curadoria de duas mulheres, as espanholas María de Corral e Rosa Martínez. Espalhada por toda a cidade, o público terá até o dia 6 de novembro para descobrir, apreciar, criticar, inquietar-se, desgostar e se relacionar com cerca de 300 artistas divididos nas duas grandes exposições A Experiência da Arte (LEsperienza delArte), com curadoria de María de Corral, e Sempre um Pouco Mais Além (Sempre un poPiù Lontano), com curadoria de Rosa Martínez, além das representações nacionais de 55 países e uma série de eventos paralelos.
A curadoria de María de Corral procurou construir alguns parâmetros históricos para se fundar a contemporaneidade nas artes plásticas. A exposição de Rosa Martínez teve um caráter mais prospectivo ao intuir pesquisas visuais que definiriam o presente e, talvez, apontassem novos caminhos para a discussão artística. Em ambas observou-se um olhar amplo e cuidadoso ao se discutir novas cartografias para a produção contemporânea e pontuar as exposições com a multiplicidade própria do cenário artístico internacional.
Ao seguir o modelo das representações nacionais das grandes feiras internacionais do século 19, a Bienal de Veneza ainda aposta num mundo muito reduzido. E a representação artística por países soa cada vez mais anacrônica. O mundo muda na mesma velocidade que suas representações culturais e perceber que sobre a inscrição "Iugoslávia", em seu pavilhão, foi sobreposta a inscrição "Sérvia e Montenegro" ou notar que o pavilhão da Suécia e Noruega teve o nome da Finlândia retirado, faz pensar em novas configurações culturais e geopolíticas. A própria realidade da produção artística mostra uma nova rede global na qual, por exemplo, Adrian Paci, nascido na Albânia, mora na Itália; Shahryar Nashat, nascido no Irã, expõe no pavilhão da Suíça; e Tino Sehgal, nascido na Inglaterra, está no pavilhão da Alemanha.
A pintura é certamente uma forma importante para se pensar a contemporaneidade e a exposição A Experiência da Arte colocou grandes pintores (Francis Bacon, Philip Guston, Antoni Tàpies, Agnes Martin) como formadores de uma visualidade contemporânea. Pintores mais recentes (Marlene Dumas, Gabriel Orozco, Juan Uslé, Bernard Frize, Joan Hernandez Pijuan, João Louro) podiam ser entendidos como desdobramentos mais atuais da pintura, seja por seu aspecto irônico, pop, trágico ou formal. Na exposição Sempre um Pouco Mais Além, a artista Semiha Berskoy (1904-2004) era apresentada, logo na segunda sala, por uma série de pinturas de traços e cores expressivas, de caráter intimista e subjetivo. No pavilhão da Austrália Rick Swallow criou naturezas mortas barrocas, trazendo elementos do cotidiano em delicadas esculturas de madeira. Ed Ruscha, no pavilhão norte-americano, era uma sombra de sua importância histórica anterior ao apresentar uma pintura pretensamente crítica e monumental.
O caráter de comprometimento político esteve presente nas duas grandes exposições coletivas das curadoras. Ambas tinham trabalhos contundentes como abertura de seus trajetos. A Experiência da Arte abria com um trabalho de Barbara Krueger na fachada do pavilhão italiano, e Sempre um Pouco Mais Além trazia cartazes "plottados" do grupo de atuação artístico-político Guerrilla Girls (elas estiveram em Curitiba em 1995) e o provocativo trabalho de Joana Vasconcelos, um imenso candelabro realizado com 14 mil absorventes femininos. Artistas de um viés mais crítico como Jenny Holzer, Bruce Nauman, Stan Douglas, Mona Hatoum ou a jovem performer Regina José Galindo lembravam a trama mais política dentro da qual muitos trabalhos se inscreviam.
A discussão política direcionada ao universo da arte, além de estar presente nos cartazes do grupo Guerrilla Girls, aparecia nos grandes "plotters" do arquiteto Rem Koolhaas. Comentando a questão do espetáculo ligado aos museus, por exemplo, um dos cartazes afirmava que o crescimento do espaço físico de oito grandes museus do mundo era comparável a 43 estádios de futebol. O projeto do Museu de Arte Americana, apresentado em forma de pequena exposição dentro da grande exposição, discutia as estratégias político-institucionais da entrada da arte norte-americana na Europa ao focar, em especial, sua participação na Bienal de Veneza de 1964.
A cultura de massas era um forte contraponto em diversos trabalhos apresentados. O artista e performer Leigh Bowery (1961-1994) trouxe o universo da cultura da noite, das festas, do rock e do cross-dressing para as fronteiras da intervenção artística e do teatro da crueldade. Candice Breitz, num dos trabalhos mais interessantes da Bienal, editou cenas de filmes de astros de Hollywood relacionadas ao tema da maternidade e da paternidade. José Damasceno trouxe o universo efêmero da notícia numa instalação com colunas de jornal e impressões na parede com as palavras "ontem", "hoje" e "amanhã".
O estatuto da imagem na contemporaneidade talvez se coloque como uma das discussões artísticas mais prementes e esteve presente em muitos trabalhos da Bienal. Natalija Vujo?evi?, na instalação "In Case I Never Meet You Again" (telão central com um casal olhando-se detidamente, duas projeções laterais com imagens ligadas a memória e trilha sonora) buscava uma outra espessura para as imagens. Apresentado por Joachim Koester, em Message from Andrée, um filme velado encontrado nos restos de uma expedição ao Pólo Norte (1897) buscava a significação no que está além (ou aquém) da visível. A videoinstalação de Pipilotti Risti na igreja barroca de San Stae trazia para a imagem a densidade da revelação quase-metafísica. Imagens associadas ao feminino e à fertilidade, projetadas no imenso teto da igreja, eram vistas pelos espectadores deitados em colchões por toda a extensão do chão da igreja.
Sem estabelecer hierarquias sobre as fontes da arte contemporânea, a Bienal trouxe também, na grande presença de fotografias e imagens em movimento, a realidade das mudanças na linguagem visual. Stan Douglas realizou um filme inspirado na película do cineasta Tomas Gutierrez Alea, Memórias do Subdesenvolvimento, e William Kentridge prestou uma homenagem a George Méliès em sua videoinstalação. Como já apontado por Lisette Lagnado, em artigo da revista digital Trópico, a linguagem do cinema, assim como a da fotografia, precisa ser trazida para a discussão e entendimento das artes plásticas contemporâneas.
Outras experiências perceptivas da arte foram colocadas por uma série de propostas. Numa espécie de nave espacial, Mariko Mori visava a transformação de ondas cerebrais em imagens, porém conseguiu apenas uma ilustração de seu propósito. O grupo brasileiro Chelpa Ferro, que tem uma interessante pesquisa sobre visualidade e som, também não conseguiu bom resultados.
Numa sala de espelhos Valeska Soares recriava um salão de baile e colava o espectador às imagens de melancólicos dançarinos solitários. Rivane Neuenschwander colocou em seu ambiente máquinas de escrever com os tipos trocados nos quais a linguagem silenciava através dos dedos dos espectadores. Seguranças de exposição deixavam suas sisudas tarefas para cercarem o espectador entoando em coro "Its art contemporary" na provocativa e imaterial proposta de Tino Sehgal. E reafirmando o corpo sensível do espectador, Shahryar Nashat mostrava em seu vídeo a percepção de uma sala do pintor Rubens, no Museu do Louvre, sendo dada em toda a extensão do corpo de um rapaz.
Muitíssimo mais poderia ser dito sobre outros trabalhos, porém sua totalidade e os inúmeros espaços expositivos eram impossíveis de serem vistos e apreendidos em pouco tempo. Após muito se deslumbrar, irritar, pensar, andar, beber cafés (distribuídos gratuitamente), cansar, descansar (nas espreguiçadeiras da artista Andréa Blum colocadas nos jardins), encantar e até morrer (a proposta "Swangsong" do grupo The Centre of Attention pedia que se escolhesse uma música para seu próprio velório) um espectador mais aberto poderia certamente afirmar a fina inteligência e o viés crítico que conduziu a curadoria desta Bienal. Talvez afirmasse também, este renovado espectador, a relevância da arte como forma de compreensão deste complicado mundo no qual vivemos.
Paulo Reis é crítico e professor de História da Arte da Universidade Federal do Paraná.
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