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"Ao correr, ele tem a aparência de um boxeador lutando contra a própria sombra e todo o corpo parece ser, assim, um mecanismo desequilibrado, deslocado, dolorido, com exceção da harmonia nas pernas, que mordem e mastigam a pista com voracidade. Em resumo, ele não faz nada como os outros, que às vezes acham que ele faz qualquer coisa. (...) O nome Zatopek, que antes não era nada, nada além de um nome esquisito, põe-se a soar universalmente em três sílabas móveis e mecânicas, uma valsa impiedosa em três tempos, som de galope, ronco de turbina, tinidos de bielas ou de válvulas escandidos pelo k final, precedido pelo z inicial, que já é bastante rápido: fala-se zzz e sai tudo em seguida rapidamente, como se essa consoante fosse o disparo de uma largada."Trecho de Correr, de Jean Echenoz, traduzido por Bernardo Ajzenberg.

O atleta Emil Zatopek, a "Locomotiva de Praga", foi um dos mais importantes do século 20. Das proezas que fizeram dele uma espécie de super-herói, a maior talvez tenha sido vencer três provas de longa distância num período de dez dias durante as Olimpíadas de Helsinque, em 1952. Ele levou o ouro nos 5.000 metros, nos 10.000 e na maratona, para a qual se inscreveu no último minuto.

Mesmo quem não faz ideia de quem ele seja, tem a impressão de conhecer o nome: Zatopek. O checo morto no ano 2000, dois meses e três dias depois de fazer 88 anos, é o protagonista de Correr, de Jean Echenoz.

O livro faz parte da leva de romances que não escondem suas referências factuais, cria em cima delas e constrói um resultado híbrido que consegue ser fascinante por narrar a história de um ídolo esportivo que existiu (não apenas na literatura) usando as armas da ficção.

O francês Echenoz é criterioso com as informações em que baseou a narrativa – várias das corridas disputadas por Zatopek aparecem no livro respeitando locais, datas, participantes e resultados. O que o escritor faz, e faz bem, é descrever detalhes das situações vividas pelo corredor. Quem conta as peripécias dele é um narrador bem-humorado e complacente, que consegue falar do checo com distância, mas sem deixar de ser afetuoso de alguma maneira.

A história começa com o menino Zatopek, um dos seis filhos de uma família pobre. Para ajudar em casa, ele trabalha na fábrica de sapatos Bata, alimentando o plano de estudar química e ascender dentro da empresa.

Dispostos a fazer qualquer coisa para promover a marca, os executivos da Bata incentivaram parte dos funcionários a participar de uma série de corridas. Mesmo contrariado, Zatopek se deixou convencer da importância das provas. Aliás, como se deixava convencer de várias outras coisas – sua biografia é marcada pela relação com o regime socialista na Checoslováquia, que não hesitou em usar o atleta, estupidamente, como garoto-propaganda.

Nas corridas promovidas pela companhia, Zatopek se saiu bem. Não chegou a vencê-las, mas chamou a atenção e começou a pegar gosto pela prática depois de algumas provas. O que era surpreendente porque, antes disso, abominava qualquer forma de atividade física. Ele e o pai achavam os esportes um jeito burro de gastar tempo. O ideal era investir em qualquer coisa que desse dinheiro.

Superpoder

O maior talento de Zatopek parecia ser a tolerância à dor. Ele se submetia a exercícios apavorantes e treinava sempre com o intuito de testar seus limites. É atribuída ao checo a criação do sprint, a corrida final nas provas de longa distância, quando o atleta queima o que resta de energia para ganhar velocidade.

Sem técnica, não era considerado elegante nem sabia usar os braços e a cabeça da maneira que se deve. O metódo de Zatopek era um só: correr até se acabar. Não por acaso, uma de suas marcas era a expressão de dor no rosto. "Não tenho talento o bastante para correr e sorrir ao mesmo tempo", ele dizia. Fazia cara de sofrimento porque, na prática, sofria mesmo. Mas aguentava o tranco como ninguém.

Echenoz faz um livro-tributo e descreve um homem de personalidade afável, sem ambição, mas, ao mesmo tempo, obstinado. Alguém que ignorava complicações, simples na maior parte do tempo e simplório às vezes.

O capítulo sete, de um torneio internacional ocorrido em Berlim entre as forças aliadas, é eletrizante. Zatopek é o único atleta enviado pela Checoslováquia e encara uma viagem surreal de trem, passando cinco horas de pé num vagão lotado.

Na Alemanha, mal consegue se comunicar. No desfile de abertura, caminhando atrás do soldado que segura a placa do país, passa vergonha por ser tímido e estar sozinho. O governo checo não pagou nem sequer por um agasalho apropriado e ele teve de desfilar com o shorts e a camiseta vermelha que usaria na prova.

Sentindo-se perdido, não entendeu quando os atletas foram chamados para correr os 5.000 metros. O desempenho raivoso de Zatopek ganha força com a narração genial de Echenoz.

O corredor que poucos conheciam coloca uma e depois duas voltas em cima dos adversários. "Esse sujeito faz tudo aquilo que não se deve fazer e ainda ganha", disse à época Larry Snider, treinador do americano Jesse Owens, famoso pelo episódio em que venceu uma disputa nas Olimpíadas de Berlim e, por ser negro, viu Hitler se recusar a cumprimentá-lo.

A proeza de Zatopek deixou o público "à beira de um colapso". "E ele, Emil, nem um pouco cansado, exibindo um belo sorriso, continua a trotar suavemente depois da chegada, como quem se recoloca em forma depois de um pequeno esforço", escreve Echenoz no seu livro pequeno de coração enorme. GGGG

Serviço:

Correr, de Jean Echenoz. Alfaguara, 128 págs., R$ 29,90.

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